Na raiz do impeachment se identifica a rejeição à soberania do voto popular, cultivada atavicamente por castas sociais poderosas. Quatro dias após a reeleição, o PSDB já questionava a legitimidade da candidata que triunfara. Diante da inércia e da hesitação do governo, grupelhos de fanáticos de extrema-direita se vitaminaram, deflagrando a formação de coalização semelhante à que fulminou Jango.
Poucos anos depois da deposição do
presidente constitucional João Goulart, em 1964, um dos arautos mais
estridentes do movimento avacalhou-o como “golpe vagabundíssimo''. Houvera, de
fato, golpe de Estado. Mas antes o arauto o incensara como “Revolução'', em
caixa-alta. E como cruzada em defesa da democracia e contra a corrupção.
Proclamaram que seria uma “Revolução''
destinada a assegurar eleições diretas para o Planalto. Logo aboliram-nas.
Denunciados pelos golpistas como larápios, Jango e o ex-presidente Juscelino
Kubitschek tiveram a vida devassada, e os esbirros não obtiveram uma só prova
de que os investigados tivessem se apropriado de patrimônio público. Os dois
acabaram formando ao lado do velho antagonista. Batalhando pela
redemocratização, conforme os dois ex-governantes, ou democratização, como
preferia o arauto do 1º de abril. Juntos contra a ditadura parida pela
derrubada de Goulart.
Neste exato instante, começo da tarde de
11 de maio de 2016, o Senado debate o afastamento da presidente constitucional
Dilma Rousseff. A guilhotina tem hora marcada, a madrugada vindoura. Sem
blindados nas ruas e divisões de infantaria nas estradas. Com uma embalagem
menos vulgar que a de 52 anos atrás. Mas mesmo assim um golpe de Estado. Mais
um golpe vagabundíssimo.
Dilma sofre processo de impeachment sem
que exista um único indício ou prova de que tenha cometido crime. Ao contrário
de numerosos algozes, os senadores e deputados denunciados por uma vastidão de
artigos do Código Penal. As manobras fiscais de créditos e ditas pedaladas não
constituem subtração de dinheiro do povo. Eram práticas corriqueiras de todos
os grandes partidos, aqueles que em maioria se preparam para eliminar a
presidente consagrada em 2014 por 54.501.118 votos. Configura injustiça _ou
golpe_ aplicar determinados critérios punitivos a gestores de certa coloração,
e a de outras, não.
Dilma Rousseff não está sendo deposta em
virtude do seu desastroso segundo mandato. Ao trocar suas promessas de palanque
pela plataforma do candidato derrotado, ela impôs à sua base social os maiores
sacrifícios da crise. Agravou-a, castigando os brasileiros mais pobres. Um dia
a história talvez esclareça por que a presidente fez o que fez.
Seria indigno, contudo, culpar Dilma
pelo golpe. As responsabilidades são dos autores. Na raiz do impeachment se
identifica a rejeição à soberania do voto popular, cultivada atavicamente por
castas sociais poderosas. Quatro dias após a reeleição, o PSDB já questionava alegitimidade da candidata que triunfara. Diante da inércia e da hesitação do
governo, grupelhos de fanáticos de extrema-direita se vitaminaram, deflagrando
a formação de coalização semelhante à que fulminou Jango (as Forças Armadas e a
Igreja são exceções notáveis; os grandes proprietários de terras, o
empresariado mais graúdo, os meios de comunicação hegemônicos, o Congresso
conservador e a classe média mais radicalizada reeditam o papel desempenhado há
meio século; a Casa Branca, rápida no gatilho para pitacar até sobre corrida de
calhambeques mundo afora, cala sobre a farsa antidemocrática no Brasil).
A recusa às urnas não é mera
idiossincrasia desvinculada de outros propósitos. Coube a um jornalista
bem-humorado boa explicação. Falando pela boca da dona História, Luis Fernando Verissimo escreveu: “[…] A ilusão que qualquer governo com pretensões sociais
poderia conviver, em qualquer lugar do mundo, com os donos do dinheiro e uma
plutocracia conservadora, sem que cedo ou tarde houvesse um conflito, e uma
tentativa de aniquilamento da discrepância. Um governo para os pobres, mais do
que um incômodo político para o conservadorismo dominante, era um mau exemplo,
uma ameaça inadmissível para a fortaleza do poder real. Era preciso acabar com
a ameaça e jogar sal em cima. Era isso que estava acontecendo [em 2016]''.
Não é no piscar de olhos histórico de
pouco mais de um século desde a Abolição que são suprimidas relações de poder
obscenas na derradeira nação a extinguir a escravidão formal. O Brasil
permanece como um dos dez países mais desiguais. A terra onde uma patroa de
classe média tinha e quem sabe ainda tenha chiliques ao se deparar com a
empregada doméstica trajando roupa igual à sua.
Há uma pegadinha marota, abrangendo
apenas três anos e pouco, nos balanços da economia e de indicadores sociais na
queda de Dilma. Seu governo agoniza, mas o cartão vermelho é sobretudo para os
13 anos e quatro meses de representantes do PT na Presidência. Perdas e danos
devem ser contabilizados desde 2003.
Nesse período, ninguém insinuou
revolução ou ameaça aos interesses mais caros dos manda-chuvas de sempre. Mas o
que se passou não foi indiferente à população que desde o desembarque de Cabral
levou a pior. Nos 13 anos petistas, a renda dos mais pobres teve 129% de aumento real, descontada a inflação. E a dos mais ricos, 32%.
De 2001 a 2009, a taxa de pobreza no país despencou de 35,2% para 21,4%. A da extrema pobreza, para menos da metade,de 15,3% para 7,3%. O programa Bolsa Família contribuiu para a queda, bem comoo aumento real do salário mínimo em 53%, nos oito anos de Lula (2003-2010). Em 2013, 13,8 milhões de famílias eram atendidas pelo Bolsa Família,aproximadamente 27% da população ou ao menos 50 milhões de viventes. Poucas
iniciativas dos anos Lula-Dilma foram tão demonizadas como o Bolsa Família. O
programa tem notórias limitações, mas comer um prato de comida não é capricho
para os ao menos 30 milhões de seres humanos que deixaram a miséria absoluta, a
da fome.
Nesses 13 anos, as universidades
receberam mais estudantes que antes. E mais negros. Avião deixou de ser
transporte só de bacana. Empregadas domésticas conquistaram carteira assinada.
O desemprego hoje, a despeito do aumento recente, é menor do que em tempos de
Fernando Henrique Cardoso. A mortalidade infantil despencou. O salário mínimo
recuperou-se também com Dilma.
Nada foi benesse, e sim conquista de
quem foi à luta. Mas tudo sobreveio de 2003 a 2016, o que é fato, e não
opinião.
Eis o que a dona História, de Verissimo,
quis dizer: até dividir um pouquinho da riqueza é inaceitável para os donos do
dinheiro.
Tomara que no porvir os historiadores
não minimizem um capítulo decisivo da deposição de Dilma: o golpe não ocorreria
se o PT tivesse aceitado livrar Eduardo Cunha do voto pró-cassação por quebra
de decoro parlamentar. Para retaliar, Cunha instaurou a ação do impeachment,
acelerou-a, tramou e presidiu a sessão da Câmara em 17 de abril, encaminhando a
degola.
Dilma paga por um gesto de decência do
PT, e não por uma das numerosas ações indecentes que caracterizam a trajetória
do partido. Se Aécio Neves tivesse se submetido à manifestação soberana dos
cidadãos em 2014, talvez o impeachment não prosperasse. Sem Eduardo Cunha, com
certeza a conspiração não teria vingado.
O PMDB participou das administrações do
PSDB e do PT. Agora deve alcançar o poder, sem intermediários. O Brasil cai na
mão do que existe de mais atrasado, e não apenas em matéria de zelo pela coisa
pública. É medieval a agenda sobre comportamento e direitos civis de muitos
figurões do impeachment e do iminente governo Michel Temer. Quem assume é a
agremiação de Eduardo Cunha.
Collor foi apeado em 1992 depois de
comprovadamente ter cometido crime. Com Dilma, isso não ocorreu. A deposição de
2016 pertence à família da de 1964.
A saída à força da presidente é menos
uma derrota pessoal e muito mais uma tragédia para o Brasil e a democracia tão
golpeada.
P.S.: o autor da expressão “golpe
vagabundíssimo'' é Carlos Lacerda, governador da Guanabara em 1964. Durante sua
vida, Lacerda (1914-1977) foi protagonista de golpes bem ou mal sucedidos. Mas
enfrentou duas ditaduras e muitas vezes lutou pela democracia e contra o
golpismo. Militou no comunismo, tornou-se anticomunista. “Não era um homem, mas
uma convulsão da natureza'', disse Barbosa Lima Sobrinho. É legítimo supor que
hoje Lacerda estaria deste ou daquele lado. Não me arrisco a chutar. Ele é o
protagonista do meu próximo livro, a sair pela Companhia das Letras no ano que
vem. Sem deixar de contar as décadas anteriores, concentro-me no período
1964-1977. Ao iniciar a empreitada do livro, sabia que seus personagens e temas
permanecem apaixonantes. Mas não imaginava que seriam tão atuais.
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