Já predominava o 'jogo de cartas marcadas' nas licitações, com obras direcionadas para a construtora que a idealizava. Ou seja, o vencedor de uma licitação era definido previamente. Para pagamento de vantagens a agentes públicos, a obra ia recebendo aditivos ao longo da execução do projeto.
O empresário Emílio
Odebrecht mentiu ao dizer que o esquema de corrupção, com pagamento de propinas
a gestores públicos e financiamento de campanhas, está implantado no país há
apenas 30 anos.
No Livro ‘Estranha
Catedrais – As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988’,
de Pedro Henrique Pedreira
Campos, mostra como as mesmas construtoras que hoje estão no banco dos réus da
operação Lava Jato já pagavam propinas e se organizavam em cartéis durante o
regime militar. E até antes.
Esse esquema poderoso, montado por empreiteiras, dentre elas a Odebrecht, está
bem detalhado no capítulo 4 – O Estado ditatorial e as políticas públicas para
o setor da construção/Tenebrosas transações – empreiteiros e denúncias de
corrupção na ditadura.
Delfim Neto, por exemplo, era o grande 'negociador' com as grandes empreiteiras no regime militar.
Já predominava o 'jogo de cartas marcadas' nas licitações, com obras direcionadas para a construtora que a idealizava. Ou seja, o vencedor de uma licitação era definido previamente. Para pagamento de vantagens a agentes públicos, a obra ia recebendo aditivos ao longo da execução do projeto. Para vencer a licitação, a empreiteira geralmente apresentava o menor valor, mas ia fazendo acréscimos posteriormente.
Os empreiteiros interferiam na definição de obras que deveriam constar no orçamento. Uma ingerência forte no aparelho estatal, como ocorre até hoje, conforme foi revelado pelo empresário Emílio Odebrecht, em delação premiada na Lava Jato.
Professor do
departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), Pedro Henrique Pedreira Campos, concedeu entrevista ao Jornal El País,
em 2015, e revelou que o pagamento de propina na Petrobras transcende o PT e o
PSDB. Ele revela que os esquemas de corrupção, envolvendo empreiteiras, vêm dos
anos 50.
O título, ele explica,
é uma referência a "Vai Passar", gravada por Chico Buarque em 1994,
que cita as "estranhas catedrais" erguidas no país das "tenebrosas
transações".
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Confira
a entrevista com o professor Pedro Henrique Pedreira Campos
Pergunta.
Com a Lava Jato há um debate sobre a origem da corrupção na Petrobras. Quando
começou a corrupção na estatal?
Resposta. Existe um
jogo de empurra para ver de quem é a culpa, e isso fica muito à mercê dos
conflitos políticos atuais. O problema transcende as principais siglas
partidárias, PSDB e PT. A prática de pagamento de propina na Petrobras vai além
disso. Pode ser que tenha surgido no governo do FHC e do Lula um esquema para
financiamento de campanha. Este tipo específico de procedimento talvez tenha
sido criado nestes governos, com o envolvimento de diretores da estatal e
repasse para partidos. Mas isso é apenas um indicativo de quão incrustadas na
Petrobras estão estas construtoras. Muitas dessas empresas prestam serviço para
a estatal desde 1953, e existem registros de que essas práticas ilegais já
existiam nesta época.
P.
A corrupção é a exceção ou a regra no mercado das construtoras?
R. A impressão que
tenho, e temos indícios disso, é de que a prática de cartel é
institucionalizada no mercado de obras públicas. As vezes existem conflitos,
mas o que impera é o acordo, os empresários não querem uma luta fratricida,
porque isso reduziria as taxas de lucro deles, então eles tentam dividir os
serviços. E isso remonta há muito tempo, desde a década de 50, quando o mercado
de obras publicas no Brasil começa a se firmar.
P.
Qual era a situação das grandes construtoras antes ditadura?
R. Na segunda metade da
década de 50, com a construção de Brasília no Governo de Juscelino Kubitschek e
a as obras de infraestrutura rodoviária, as empresas começaram a prosperar.
Antes de JK elas tinham apenas alcance local e regional: eram empreiteiras
mineiras, paulistas e cariocas que realizavam obras em seus respectivos
Estados. Naquele período elas não tinham sequer o domínio sobre técnicas para
obras hidrelétricas, por exemplo.
P.
Como era a relação das empreiteiras com os militares?
R. Elas foram sócias da
ditadura. Nisso a Camargo Corrêa se destaca. O dono era muito próximo do regime,
e ela financiou a Operação Bandeirante, que perseguiu militantes de esquerda no
país. As empreiteiras tiveram uma participação importante no golpe de 1964, que
foi um golpe civil-militar. Várias associações de empresários foram antessalas
do golpe, que contou com uma participação intensa do setor de construção. E
depois elas colheram os frutos deste apoio.
P.
Qual construtora que mais cresceu durante a ditadura?
R. A Odebrecht, que
hoje é uma gigante do mercado, era muito periférica antes da ditadura. Era uma
pequena empreiteira nordestina, bastante secundária. Não participou das obras
do plano de metas do JK, nem das rodovias, mas ela cresce de maneira
impressionante durante o período de exceção. Em grande parte porque ela tinha
uma presença muito forte junto à Petrobras, que na época tinha muitas obras no
Nordeste. Quando a estatal começou a crescer, a Odebrecht foi junto. E à partir
daí ela conseguiu o contrato do aeroporto do Galeão (RJ).
P.
O que deu força às empreiteiras brasileiras na ditadura?
R. O decreto
presidencial 64.345 de 1969 estabeleceu uma reserva de mercado paras empresas
brasileiras, que caiu como uma luva para elas, que não tinham como concorrer
com as estrangeiras. [Segundo o texto, “só poderão contratar a prestação de
serviços de consultoria técnica e de Engenharia com empresas estrangeiras nos
casos em que não houver empresa nacional devidamente capacitada”] O decreto
facilita a formação de cartel entre elas, a aumentou muito o volume de recursos
e obras que as construtoras passaram a obter de contatos públicos. Com esse
dinheiro elas vão adquirir tecnologia para realizar outras obras, como
aeroportos supersônicos, as usinas nucleares, etc. Com o decreto elas passaram
a tocar as obras do chamado ‘milagre econômico’ da ditadura, o que permitiu que
elas obtivessem lucros altíssimos e aprofundassem as práticas de cartel e
corrupção no Governo.
P.
Não havia investigação destas práticas irregulares na ditadura?
R. [Essas práticas] não
eram coibidas. Muitas vezes obras eram contratadas sem concorrência, isso era
muito comum na época. As investigações sobre práticas de cartel eram raras, os
mecanismos de controle estavam amordaçados, não havia Ministério Público e a
imprensa era censurada.
P.
Existe algum indício de que durante a ditadura haviam pagamentos de propina?
R. Naquele período
vinham menos denúncias a público, mas isso não quer dizer que não houvesse
corrupção. Há indícios que havia um sistema de propina institucionalizado
naquela época. Documentos do Serviço Nacional de Informação indicam que haviam
pagamentos irregulares, e que alguns agentes públicos seriam notórios
recebedores de propina e comissões. Isso era muito comum e corriqueiro no
período. Com o fim da ditadura isso passa a vir mais a público.
P.
Com a democratização, o modus operandi das empreiteiras mudou?
R. Houve uma mudança
bastante pronunciada, que segue a mudança da organização do Estado. Durante a
ditadura as atenções das empreiteiras estavam voltadas para o poder Executivo –
ministérios e empresas estatais, principalmente. E quando o país se abre para a
democracia a correlação de forças muda, e elas tentam se adaptar. Elas passam a
atuar junto às bancadas e aos partidos políticos, porque o Legislativo ganha
força. Elas passam a ser ativas para obter emendas parlamentares e verba para
obras. Existe inclusive no Congresso uma bancada da infraestrutura, e eles são
bastante afinados com o desenvolvimento das empresas.
P.
Existe um mito de que durante a ditadura a corrupção era menor. Isso se
comprova factualmente?
R. Eu diria que a
corrupção era mais difundida e generalizada, pela falta de mecanismos fortes de
fiscalização.
P.
As empreiteiras ainda influenciam as decisões do Estado?
R. Acho que sim, elas
são muito poderosas. Estamos vivendo um momento singular, elas estão bastante
acuadas, mas elas são muito importantes no Parlamento, no processo eleitoral e
para pautar as políticas públicas. Vimos no governo Lula a retomada de vários
projetos que foram concebidos durante a ditadura, como a transposição do rio
São Francisco e a construção de Belo Monte, por exemplo. E isso remete ao poder
que esses empresários continuam tendo no Governo. “Quem faz o orçamento da
republica são as empreiteiras”, disso o então ministro da Saúde Adib Jatene em
1993. O fato é que os empresários fizeram uma transicão de muito sucesso para a
democracia. Elas haviam se apropriado de parte do Estado durante a ditadura, e
continuam lá na democracia.
P.
Os acordos de leniência que o Governo quer assinar com as empresas da Lava Jato
são uma ferramenta que pode mudar a maneira das empreiteiras atuarem?
R. Historicamente elas
já estiveram envolvidas em vários escândalos. E a lógica da política brasileira
é colocar panos quentes e continuar adiante. A linha do governo é clara: estão
na defesa declarada dessas empresas. Para mudar a relação do Estado com as
empresas no Brasil seria preciso uma mudança profunda, repensando o sistema de
financiamento eleitoral, e criando alternativas às empreiteiras privadas no
país.
Leia
trechos do capítulo “Tenebrosas Transações” – Empreiteiros e denúncias de
corrupção na ditadura
Assista a uma entrevista de Pedro Campos disponível no Youtube
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