Vale
lembrar que o extremismo põe todos em risco, inclusive os extremistas. Não são
apenas os antibolsonaristas que correm perigo
Por Conrado Hübner Mendes
Época
Não pensei que esse dia fosse possível,
mas nunca deixei de imaginá-lo. Venho ruminando a hipótese da eleição de Jair
Bolsonaro há pelo menos cinco anos. Em março de 2014, publiquei no jornal O
Estado de São Paulo o texto "Reféns do bolsonarismo". Nele criticava
o governo da hora, que se permitia desidratar políticas de implementação de
direitos por covardia e medo dos surtos de primitivismo de um deputado do baixo
clero: "A minoria tem de se calar e se curvar à maioria!"; "Não
somos nós que temos de respeitar homossexual, eles é que têm de me respeitar";
o Presídio de Pedrinhas, onde presos foram decapitados, era a "única coisa
boa do Maranhão". Alertava que o deputado não era apenas um "lembrete
pedagógico de um país que um dia existiu", mas "a versão mais
antipática de um Brasil que ainda nos espreita da esquina". Diante da
constatação do risco, sentia que "o alarme passa a tocar".
Jair Bolsonaro me respondeu por sua rede
no Facebook. Ou melhor, não se dirigiu a mim, mas a seus seguidores, e os
convocou para uma manifestação em massa ao jornal. Numa linguagem cifrada,
afirmava que minha atitude "nas entrelinhas prega democracia desde que
seja a que ele entende como tal. Entretanto, acredito que não goste de minha
postura, talvez, por alguma particularidade". Não sei a que
particularidade se referia. Não é que eu não goste de sua postura. Se fosse só
uma questão de gosto ou de preferência estética, nossa divergência seria
irrelevante. A divergência ética com alguém que quer definir democracia no
grito (e assim praticar contradição performativa), essa sim é irreconciliável.
O deputado tinha razão em dizer que a
democracia não é a que cada um "entende como tal". Nem eu, nem ele,
sozinhos, podemos defini-la. A democracia moderna foi o produto de pelo menos
2.500 anos de filosofia e alguns séculos de história política ao redor do
mundo. No Brasil, nossa melhor versão veio em 1988, com seus vícios e virtudes.
Definir a democracia no grito, batendo a mão na mesa, é a síntese do líder
antidemocrático. Não é incompatível com a minha ou com a sua noção de
democracia; é incompatível com os mínimos denominadores comuns universais à
democracia.
Recebi milhares de mensagens com
ameaças, além das incontáveis que chegaram ao jornal. Isso foi em 2014. Três
anos mais tarde, em janeiro de 2017, publiquei no jornal Folha de São Paulo o
texto "Decálogo do Rinoceronte". Emprestando a imagem do rinoceronte
que, na peça de mesmo nome, escrita por Eugène Ionesco, simboliza a
desumanização da cidade e a gradual transformação de concidadãos num mamífero
com grande corno na cabeça, constatava a saliência desse animal no bestiário
político brasileiro. O decálogo do rinoceronte reúne os dez mandamentos da
indigência cívica:
"1. Não tolerarás a diferença nem
respeitarás o desacordo;
2. Não perguntarás nem fraquejarás
diante da pergunta;
3. Expressarás desprezo pela política e
por políticos, mas farás política com máscara de apolítica;
4. Opinarás com fé e convicção.
Deixar-se convencer pela opinião contrária é derrota;
5. Não escutarás cientistas,
especialistas, jornalistas. Ignorarás contra-argumentos, fatos, pesquisas. Não
buscarás saber quem, como, onde e por quê;
6. Contra direitos, falarás em nome de
uma entidade mística, abstrata, aritmética, imaginária: Deus, povo, maioria,
'homem de bem'. Contra direitos, invocarás uma missão civilizatória: fazer
justiça, combater o crime e a corrupção, desenvolver a economia;
7. Desfilarás superioridade moral e
intelectual, em nome da qual justificarás toda sorte de micro-agressões,
linchamentos físicos e reputacionais;
8. Mostrarás o que é certo e como se
faz, nem que seja no grito, no braço ou à bala;
9. Abraçarás slogans fáceis de
assimilar: comunismo, esquerdismo. Atiçarás emoções primárias do seu público
por meio dessas sínteses caricatas do mal;
10. Exigirás que sua particular forma de
viver seja oficial. Dirás que essa forma é natural e as outras,
desviantes."
Em tom pessimista, o texto concluía que
o embrutecimento do Brasil nos ajudava a "escutar os ecos da caverna que
nos aguarda".
Um ano mais tarde, em palestra ao
mercado financeiro, o deputado-candidato ironicamente usou ambas as metáforas:
“O mercado sempre me achou um rinoceronte. Vou me dar por feliz se sair daqui
com vocês me achando um homem das cavernas”.
O embrutecimento seguiu vertiginoso,
impulsionado pela tecnologia. O alarme tocou, os ecos saíram da caverna, e a
rinocerite contagiou as famílias, o trabalho e as ruas. O bolsonarismo está aí,
e é maior que Bolsonaro. Teremos não só que sobreviver a essa política sem perder
a dignidade, mas dela participar. Participar, até segundo aviso, como se
estivéssemos dentro da normalidade democrática. É com base nessa suposição que
respeitamos os vitoriosos das urnas e exigimos deles o respeito recíproco às
instituições. E para lidar com rinocerontes, vale insistir nesse mesmo
decálogo, mas com sinal trocado. Pelo menos por enquanto.
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