Rodrigo Lago
Mesmo que aprovada por plebiscito, a
convocação de Constituinte específica seria inconstitucional. Só se poderia
admitir uma Constituinte caso se reconhecesse o rompimento da ordem
constitucional. Uma Constituinte plena, geral, sem amarras, e que aprovaria uma
nova Constituição
2009 – Michel Temer: “Uma constituinte
exclusiva para a reforma política significa a desmoralização absoluta da atual
representação”. (“Não à Constituinte exclusiva”, publicado no site da Câmara
dos Deputados em 2009-2010)
2013 – Dilma Rousseff: “Quero, nesse
momento, propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que
autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a
reforma política que o país tanto necessita. O Brasil está maduro para avançar
e já deixou claro que não quer ficar parado onde está” (discurso da Presidenta
da República, Dilma Rousseff, durante reunião com governadores e prefeitos de
capitais, em 24.06.2013)
* O constitucionalista Michel Temer é o
atual vice-presidente da República, eleito para o quadriênio 2011/2014 com a
presidente Dilma Rousseff, nas Eleições 2010. Ao tempo do artigo acima citado,
porém, ainda era deputado federal e presidente nacional do PMDB.
O Brasil vivencia um momento
indecifrável. O povo saiu às ruas para protestar. Tudo pode ter começado com o
impopular aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus em São Paulo.
Alguns poucos manifestantes foram ganhando adesões em massa. De repente, um
conflito com a Polícia Militar foi o suficiente para eclodir a revolta popular
no Brasil inteiro. No Rio de Janeiro, estima-se que apenas em um dos dias de
manifestação havia trezentas mil pessoas na tradicional Avenida Rio Branco – os
manifestantes afirmam que havia um milhão de pessoas. O aumento das passagens
foi revogado em São Paulo e em várias cidades no Brasil, mas o povo não saiu
das ruas. As reclamações são as mais diversas: o desperdício de dinheiro
público com os estádios da Copa do Mundo; os poderes de investigação criminal e
a demonizada PEC 37; a impunidade; a necessidade de reforma política; a
deficiência de representação institucional; mobilidade urbana; mais recursos
para a saúde e para a educação. Enfim, o povo está insatisfeito, mas não se
sabe exatamente como acalmá-lo.
A presidente Dilma Rousseff, então, em
reunião emergencial com os governadores e com os prefeitos das principais
cidades brasileiras, lançou uma proposta inusitada. Dentre outros quatro
pactos, propôs a “convocação de um plebiscito popular que autorize o
funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma
política que o país tanto necessita” (discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, durante reunião com governadores e prefeitos de capitais, em 24.06.2013)
Surge a indagação: seria possível uma
Constituinte específica, ou exclusiva para tratar de reforma política? A
resposta é negativa.
O Poder Constituinte Originário não deve
satisfação à norma alguma, senão ao próprio povo que outorgou os seus poderes.
Nem se invadirá, neste texto, a discussão acerca do denominado
transconstitucionalismo dos direitos fundamentais ou mesmo do respeito aos
direitos adquiridos, que se imporia inclusive ao Poder Constituinte Originário.
Certamente o “processo constituinte específico” tratado no discurso da
presidente não seria Originário, posto que não haveria o completo rompimento e
superação da Constituição de 1988.
Então, estaria a presidente tratando do
denominado Poder Constituinte Derivado? Em sendo, este Poder é vinculado a uma
norma, no caso à Constituição que delegou ao mesmo o Poder de Reforma. Em
outras palavras, uma Constituinte Exclusiva para a reforma política seria uma
espécie de Poder de Reforma, também denominado Constituinte Derivado.
E o Poder de Reforma, ou Constituinte
Derivado, deve respeito às cláusulas pétreas, sendo estas as expressas, mas
também as implícitas. Nestas últimas cláusulas pétreas, as implícitas, se
inclui a vedação ao processo de reforma chamado de dupla revisão. O Congresso
Nacional recebeu da Constituição uma atribuição indelegável, irrenunciável, que
o Poder de Reforma.
Para José Afonso da Silva, a denominada
dupla revisão representa “simplesmente uma fraude à Constituição” (SILVA, José
Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
442). Paulo Gonet, incorporando as lições de Nelson de Souza Sampaio, sustenta
ser intangível ao Poder de Reforma “as normas concernentes ao titular do poder
reformador” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 305).
A própria Constituição veda ao Congresso
Nacional a delegação de sua competência privativa e especificamente a
competência legislativa sobre direitos políticos e eleitorais. Qualquer ideia
sobre uma Constituinte específica exigiria a revogação do art.68, §1º, II, além
da reforma do art. 60, ambos da Constituição. E estas disposições devem ser
constitucionalmente protegidas, como cláusulas pétreas implícitas. Não é à toa
que o art. 60 da Constituição permaneceu íntegro em sua redação após as seis
emendas de revisão e as setenta e três emendas constitucionais já promulgadas.
E nem o povo pode modificar o núcleo petrificado da Constituição.
A pensar de forma diversa, o povo
poderia tudo, sem limitações, e as próprias cláusulas pétreas não teriam mais
razão de ser. Seria possível, por exemplo, revogar o art. 16 da Constituição,
para no passo seguinte implementar uma reforma casuística no processo eleitoral
às vésperas da própria eleição; ou revogar o art. 60, §4º, para em seguida se
instituir a pena de morte no Brasil. Ou de forma mais ousada, seria possível
reformar o art. 82 da Constituição, reduzindo o tempo de mandato do presidente
da República, cassando o próprio mandato da presidente da República, Dilma
Rousseff. As propostas seriam teratológicas.
Resumindo, mesmo que aprovada por
plebiscito, a convocação de Constituinte específica seria inconstitucional. Só
se poderia admitir uma Constituinte caso se reconhecesse o rompimento da ordem
constitucional. Uma Constituinte plena, geral, sem amarras, e que aprovaria uma
nova Constituição.
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