Seria principalmente agora que caberia, em nome do Estado de direito (e não de falso moralismo e de elites corruptas), exigir-se e promover-se o processo de incriminação do juiz Sérgio Moro. Essa não é uma questão pessoal ou moral (que atinge a pessoa em sua inteireza), mas sim uma questão jurídica referente a condutas penalmente ilícitas.

Por Marcelo Neves
Uma pergunta: por
que o mesmo tribunal não julgou até agora o presidente da Câmara dos Deputados?
Está lá como réu desde janeiro do ano em curso. Daí que, ressalvadas as
respeitáveis exceções, seria até o caso de se afirmar que o STF, que inclui
alguns ministros apequenados, propiciou por "omissão" o golpe de
domingo/17.04.2016, levado a cabo na Câmara, em grande parte, por uma quadrilha
de cleptomaníacos. (Raduan
Nassar, 20/04/2016)

Entretanto, o combate à
corrupção no Estado democrático de direito não deve ser realizado mediante
violação à constituição e à lei, de maneira arbitrária, como nos regimes
autoritários e totalitários, cuja aparente pretensão de banir a corrupção a
todo custo, em vez de extingui-la e “purificar” o país, redunda usualmente em
novas formas de corrupção. Exige-se de juízes e demais agentes públicos, no
Estado constitucional, que combatam a corrupção nos termos da lei e da
constituição. Nem juízes em geral nem ministros de corte suprema estão acima da
lei e da constituição.
No início da chamada “Operação
Lava Jato”, dirigida judicialmente pelo juiz Sérgio Moro, houve algum sinal de
esperança de que as atividades policiais, ministeriais e judiciais fossem
conduzidas imparcialmente, dentro da lei e da constituição. Fatos posteriores
fizeram esvanecer tal esperança. A atitude arbitrária e de cunho partidário
começou a se delinear claramente com a “condução coercitiva” do ex-presidente
Lula, por aparato policial próprio para operações contra criminosos
internacionais de alta periculosidade. Já naquele momento, os indícios de
parcialidade e partidarização começavam a tomar corpo. No entretempo, o pedido
de prisão preventiva do ex-presidente, em trapalhada de três promotores
estaduais paulistas, não competentes no âmbito da “Lava Jato”, fortificavam a
suspeita de conspiração das elites paulistas de desmoralizar um político com
grande influência no cenário nacional.
O ponto mais elevado de
manifestação da parcialidade e partidarização do judiciário ocorreu com os
vazamentos de “interceptações de comunicação telefônica” do ex-presidente da
república, sem qualquer decisão ou ato judicial motivador, pelo próprio juiz da
causa, Sérgio Moro. Ele simplesmente enviou todas as interceptações para os
órgãos de imprensa, especialmente para a TV Globo.
O caso aponta claramente para a
típica situação de “dois pesos, duas medidas”. Por muito menos, por ser-lhe
imputada a comunicação antecipada de uma operação policial contra o empresário
Daniel Dantas, o então delegado Protógenes Queiroz foi demitido da polícia
federal e condenado criminalmente, nos termos do art. 325 do código
penal[4]. Tentou-se condenar também o juiz do caso, Fausto de Sanctis,
mas esse se livrou ao ser promovido a Desembargador Federal, pois a pena de
censura que se pretendeu esdruxulamente aplicar-lhe não caberia para
magistrados de segunda instância. Por fim, em um quiproquó de filigranas
jurídicas, a chamada “Operação Satiagraha” foi anulada[5], permanecendo o
controvertido empresário livre até hoje.
Naquela ocasião, os hoje arautos
da moralidade sustentavam que se tratava de um “estado policial”. Nesse
contexto, até mesmo a respeito da atuação policial contra crime de sonegação
perpetrada por proprietária da loja de artigos de alto luxo “Daslu”, indagava o
advogado Miguel Reale Júnior: “Qual a razão de tantos policiais cercando a
Daslu?”[6]. Atualmente, os mesmos arautos da moralidade, enfatizam o valor da
atividade arbitrária da polícia, do ministério público e do judiciário contra
as garantias do ex-presidente Lula e as prerrogativas da Presidenta Dilma
Rousseff.
Entretanto, seria principalmente
agora que caberia, em nome do Estado de direito (e não de falso moralismo e de
elites corruptas), exigir-se e promover-se o processo de incriminação do juiz
Sérgio Moro. Essa não é uma questão pessoal ou moral (que atinge a pessoa em
sua inteireza), mas sim uma questão jurídica referente a condutas penalmente
ilícitas. Ao divulgar, sem nenhuma decisão motivada nos termos da lei, atos
sigilosos de “interceptação de comunicação telefônica” do processo criminal
contra o ex-presidente Lula, inclusive levando ao vazamento de conversas
telefônicas da Presidenta (em desrespeito ao fórum privilegiado), o juiz Sérgio
Moro incorreu nos artigos 8º, 9º e 10º da Lei 9.296, de 24 de julho de 1996,
que se fundamenta no art. 5º inciso XII e LX, da Constituição Federal, que
estabelecem:
“XII - é inviolável
o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal
ou instrução processual penal;
[...]
LX - a lei só poderá
restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou
o interesse social o exigirem”.
Por sua vez, os referidos
dispositivos legais prescrevem:
“Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de
qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do
inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das
diligências, gravações e transcrições respectivas.
Parágrafo único. A apensação somente poderá ser realizada
imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito
policial (Código de Processo Penal, art.10, § 1°) ou na conclusão do
processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto nos arts.
407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal.
Art. 9° A gravação que não interessar à prova será
inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual
ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte
interessada.
Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido
pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu
representante legal.
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de
comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da
Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”
Além do crime e da pena
tipificados no art. 10, relativo à interceptação de comunicação telefônica da
Presidenta Dilma Rousseff, pois a autoridade judicial competente para
autorização é o Supremo Tribunal Federal, aplica-se ao juiz Moro, por
desrespeitar o art. 8º (e também o 9º) da Lei nº 9.296/1996, o art. 325 do
Código Penal, o mesmo aplicado a Protógenes Queiroz:
“Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do
cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção,
de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1o Nas
mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
I – permite ou
facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer
outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou
banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)
II – se utiliza,
indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Se da
ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a
outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena – reclusão,
de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de
2000)”
Parece-me esdrúxula a alegação
de que essas vedações e penas não se aplicam aos magistrados. É claro que o
magistrado pode e deve divulgar a parte relevante para a caracterização do
crime quando isso for necessário para a motivação e fundamentação de decisão
definitiva ou mesmo interlocutória, após inutilização do que não interessa.
Entretanto, isso não significa o poder de divulgar, sem nenhum crivo seletivo
ou decisão motivada, às pressas e arbitrariamente, interceptações de
comunicação telefônica, muitas delas irrelevantes para o caso e respeitante
apenas à intimidade do investigado. Cumpre considerar que os referidos
vazamentos prejudicaram a própria investigação que se encontrava em andamento.
O fim, porém, não era judicial, era simplesmente o de criar um estado de
comoção política, patrocinado por meios de comunicação exuberantemente parciais
e partidários no contexto brasileiro. Entre maquiavelismo vulgar em que os fins
justificam os meios e “juizite” histérica, o que ocorreu foi prática de crime
pelo juiz Sérgio Moro.
Um elemento a mais a afastar a
inusitada alegação de que a proibição de vazamento de interceptação de
comunicação telefônica e as respectivas penas não se aplicam aos magistrados
encontra-se no art. 17 da Resolução nº 59 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), de 9 de setembro de 2008, in verbis:
Art. 17. Não será permitido ao Magistrado e ao servidor
fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão
de comunicação social, de elementos sigilosos contidos em processos ou
inquéritos regulamentados por esta Resolução, ou que tramitem em segredo de
Justiça, sob pena de responsabilização nos termos da legislação pertinente.
(Redação dada pela Resolução 217, de 16.02.16).
Essa Resolução, na sua forma
originária[7], foi aprovada pelo CNJ sob a presidência do Ministro Gilmar
Mendes, que agora, informalmente, perante a grande imprensa, parece defender
posição contrária à sua aplicação aos magistrados: “Dois pesos, duas medidas”.
Também não se diga que cabe no
caso uma ponderação entre proteção da intimidade e interesse social. Essa
ponderação judicial só teria sentido se já não houvesse regra legal penal
tipificando o crime e cominando a pena. A ponderação, nesse caso, já foi feita
politicamente pelo legislador. Diante de princípios e regras constitucionais
contrários, não cabe ponderação de regra legal penal, mas tão só a declaração
de sua inconstitucionalidade parcial ou total. Regras, especialmente regras
penais completas, que não preveem exceções à luz de princípio, não comportam
ponderação à luz de princípio. Mesmo o teórico chamado estridentemente por
discípulos empolgados de “profeta da ponderação estruturada”[8], Robert Alexy,
reconhece essa impossibilidade. A propósito, são suas as seguintes
palavras:
“Isso traz à tona a questão da hierarquia entre os dois
níveis. A resposta a essa pergunta somente pode sustentar que, do ponto de
vista da vinculação à Constituição, há uma primazia do nível das regras. [...].
É por isso que as determinações estabelecidas no nível das regras têm primazia
em relação a determinações alternativas com base em princípios.”[9]
Em relação a regras penais, o
recurso a sua ponderação ad hoc com princípios constitucionais levaria à
extrema insegurança jurídica, contra o Estado, a sociedade e os cidadãos,
servindo apenas à arbitrariedade judicial.
A essas práticas ilegais do
magistrado, os ministros do Supremo Tribunal Federal reagiram de maneiras as
mais estapafúrdias. Em decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes
suspendeu-se a nomeação do ex-presidente Lula pela Presidenta Dilma Rousseff
para Ministro Chefe da Casa Civil. Como se sabe, o cargo de Ministro de Estado
é de livre nomeação e exoneração da Presidenta da República. A alegação de
desvio de finalidade baseou-se em um vazamento ilegal de interceptação de
comunicação telefônica entre o ex-presidente Lula e a atual presidenta. O caso
já se encontrava sub judice, a ser decidido pelo ministro Teori Zavascki. A
esse juiz caberia qualificar, liminarmente, a natureza jurídica da
interceptação e da respectiva comunicação. Às pressas e de forma inusitada, o
ministro Gilmar Mendes, após encontros públicos com membros da oposição, adiantou-se
e impediu que a Presidenta praticasse um ato que lhe parecia fundamental para a
melhoria política do seu governo. A intromissão judicial na política
apresenta-se chocante nesse caso. Atos ilegais passaram a ser fundamento de
decisão judicial claramente partidária.
Nesse contexto, cabe considerar
que estão plenamente caracterizados os requisitos necessários para que se
declare a suspeição do ministro Gilmar Mendes para julgamento de qualquer caso
concernente a fatos atribuídos à Presidenta e ao ex-presidente nas atuais
circunstâncias, seja no que concerne a eventual caracterização de crime comum
ou improbidade, ou a recursos referentes ao processo de impeachment. É marcante
a manifestação do ministro, em seminário no exterior, de que “o Brasil vive um
regime de cleptodemocracia” (sem nenhum comentário crítico por parte do
ministro Celso de Mello)[10], em clara referência a casos que se encontram sub
judice no STF ou poderão chegar a sua alçada por via de recurso e, então,
deverão ser julgados por esse tribunal. Acrescentem-se a declaração do ministro
Gilmar Mendes durante sessão do STF, na qual, totalmente em descompasso com o
caso em julgamento, manifestou, em pré-julgamento esdrúxulo, juízos moral e
juridicamente negativos sobre o ex-presidente e a sua nomeação para Ministro de
Estado: “A presidente arranja um tutor para seu lugar e arranja outra coisa
para fazer. E um tutor que vem aí com sérios problemas criminais”.[11] Essa
linguagem de desprezo pela Presidenta e de suposição de prática de crime de um
ex-presidente, antes de julgamento de casos relacionados a ambos, marca a
caracterização de clara suspeição, nos termos do art. 145, inciso IV, do Código
de Processo Civil, que prescreve haver suspeição do magistrado “interessado no
julgamento do processo em favor de qualquer das partes”. Não se descarte
também, em face da linguagem desprezo do ministro à Presidenta e ao
ex-presidente e em vista das suas notórias manifestações de amizade com membros
da oposição, a aplicação do inciso I do citado artigo, que estabelece haver
suspeição do juiz “amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus
advogados”. A esse respeito, parecem serem cabíveis ao caso o sábio preceito
previsto no art. 11 do Código Ibero-Americano de Ética Judicial, referente à
imparcialidade do juiz.
“Art. 11 O juiz tem a obrigação de abster-se de intervir nas
causas em que veja comprometida a sua imparcialidade ou naquelas que um
observador razoável possa entender que há motivo para pensar assim.”
Nos termos desse dispositivo, qualquer
observador razoável poderia afirmar que o ministro Gilmar Mendes não deveria
participar de nenhuma causa referente ao processo de impeachment em andamento
ou que envolva a pretensão de responsabilização civil, administrativa ou penal
do ex-presidente Lula e da Presidenta Dilma
Rousseff.
Além da questão referente à
suspeição, cabe observar que caberia o enquadramento das mencionadas condutas
do ministro Gilmar Mendes, entre outras, no art. 35, inciso IV, da LOMAN (Lei
Complementar nº 35, de 14 de março de 1979), que impõe ao juiz o dever de
“tratar com urbanidade as partes”, e no seu art. 36, inciso III, que veda ao
magistrado “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre
processo pendente de julgamento, seu ou de outrem”. No caso tratava-se de casos
pendentes de julgamento, seja de magistrados de instância inferior, seja do
próprio STF, monocrática ou colegiadamente.
Nessa mesma linha de argumento,
incumbe observar também determinações do Código de Ética da Magistratura Nacional.
Embora possa se insinuar que ele não inclui em seu âmbito pessoal de validade
os membros do STF, pois foi aprovado por órgão subordinado ao seu controle, o
Conselho Nacional de Justiça, o Código de Ética da Magistratura funda-se na
Constituição Federal (art. 103-B, § 4º, incisos I), dirigindo-se, inclusive por
uma questão de isonomia, a todo e qualquer magistrado, restando ao STF
declarar-lhe a inconstitucionalidade parcial ou total. Na presente situação, é
relevante o art. 22 do referido Código de Ética:
“Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os
colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as
partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da
Justiça.
Parágrafo único. Impõe-se ao magistrado a utilização de
linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível.”
Somando-se às atitudes do
ministro Gilmar Mendes que indiciam elementos de suspeição no julgamento que
envolvam o ex-presidente Lula e a Presidenta Dilma Rousseff no âmbito dos
recentes escândalos de corrupção e no julgamento de remédios judiciais
referentes ao impeachment em andamento, assim como características de
infringência de normas disciplinares da LOMAN e de dispositivos do Código de
Ética da Magistratura Nacional, surgiram as bravatas do ministro Celso de
Mello, em forma de “supremites” histéricas, que denigrem a imagem do STF. Em um
primeiro episódio, veio a patética resposta ao conteúdo de uma interceptação de
comunicação telefônica, divulgada ilegalmente pelo juiz Sérgio Moro, na qual o
ex-presidente Lula, em conversa particular, afirmava que o Supremo Tribunal
Federal estava “acovardado” diante da atuação desviante de órgãos políticos e
judiciais. Que sentido prático teria a resposta do ministro a essa opinião, em
foro privado, de um político, senão a de antecipar uma posição justificadora
dos malfeitos do juiz Moro, no âmbito de um caso sub judice no próprio STF.
Embora esse episódio seja grave, uma expressão mais gritante de uma postura
politicamente parcial encontra-se na declaração posterior do ministro Celso de
Mello de que a Presidenta não poderia utilizar o termo “golpe” em suas
manifestações políticas no exterior a respeito do processo de impeachment em
andamento. Dessa maneira, um membro do STF imiscuiu-se no jogo político, não só
tomando a posição de uma das partes envolvidas na contenda, mas também
pretendendo controlar, em termos de censura, as palavras da Presidenta, em uma
antecipação chocante de sua posição sobre futuros julgamentos relativos à
constitucionalidade e legalidade do processo de impeachment em andamento. Às
manifestações do Ministro Celso de Mello juntaram-se as declarações dos
ministros Dias Tofolli e Cármen Lúcia, ambos a afirmarem publicamente, em meios
de comunicação de massa, que o impeachment em andamento não constitui um
“golpe”, imiscuindo-se no debate político-partidário e antecipando
implicitamente suas posições sobre futuro julgamento a respeito da regularidade
jurídica do impeachment em andamento. Também nessas hipóteses, infringem-se
normas da LOMAN e do Código de Ética da Magistratura Nacional e do Código
Ibero-Americano de Ética Judicial, acima citadas.
A esse respeito, especialmente
no que tange as referidas condutas do juiz Sérgio Moro e do ministro Gilmar
Mendes, em uma conversa privada recente com um magistrado de uma pequena
comarca do interior da Paraíba, ele desabafava em tom fortemente crítico, nos
seguintes termos: “Se, muito menos do que esses magistrados graúdos estão fazendo,
eu ou um colega por aqui falássemos publicamente sobre um prefeito ou
ex-prefeito no âmbito de nossas respectivas comarcas, ou manifestássemos
publicamente sobre um processo de impeachment em andamento na correspondente
Câmara Municipal, já estaríamos sendo processados disciplinarmente pelo
Tribunal de Justiça ou pelo CNJ e, em certas hipóteses, respondendo
criminalmente perante o TJ.” É insofismável que, por condutas muito menos
graves de parcialidade, o CNJ e os Tribunais de Justiças já condenaram disciplinarmente,
inclusive aposentando compulsoriamente, juízes de comarcas menos influentes no
cenário nacional.
Nesse quiproquó de um judiciário
e um STF altamente politizados, o presidente do Supremos Tribunal Federal,
ministro Lewandowski, passou a negociar com a Câmara dos Deputados aumento
elevado e diferenciado dos já privilegiados vencimentos do pessoal do
Judiciário e de ministros do STF, em um momento de crise que tende a exigir
sacrifícios de amplas parcelas da população, especialmente da classe trabalhadora.
Tudo isso aponta para um reino de fantasias, mas que, paradoxalmente, é
realidade bruta e chocante, abaixo de qualquer mínimo exigido em uma Estado
digno de funcionamento.
Todas essas observações sobre os
desvios do judiciário em geral e do STF em particular associam-se diretamente
com as condições de surgimento e o andamento do atual processo de impeachment.
Os denunciantes pretenderam envolver a presidenta nos escândalos recentes de
corrupção, apontando-os como uma das causas justificadoras do impeachment, o
que obviamente era uma ilação sem qualquer base jurídica. Nesse particular,
salientei em parecer de dezembro de 2015 que, ao contrário das ilações dos
denunciantes, que pretendem imputar à Presidente da República crime de omissão
por corrupção estrutural que tem chocado a esfera pública, especialmente no
âmbito da Petrobrás[12], há elementos claros de que a Presidenta tem apoiado
todo o trabalho da PF e do MPF na investigação e persecução dos responsáveis,
assim como qualquer apuração necessária para o esclarecimento dos casos. A esse
respeito, acrescentei que, ao contrário de governos anteriores, o governo da
Presidenta Dilma Rousseff tem apoiado tanto a polícia federal como o ministério
público federal na atividade de investigação e persecução penal relativa aos
recentes casos escandalosos de corrupção, mesmo contrariando os seus
correligionários. Essa atitude é bem diferente do governo de que participou um
dos denunciantes, a saber, em que o ministério público federal e a polícia
federal ficaram nas mãos e sob controle de pessoas ligadas politicamente ao
presidente e de sua inteira confiança, tendo sido típico os arquivamentos de
inquéritos, de tal maneira que o procurador-geral da república passou a ser
chamado popularmente de “engavetador geral da república”. Em certa medida, a
atual Presidenta da República é uma vítima da corrupção sistêmica que
caracteriza o Estado brasileiro historicamente. A propósito, um renomado membro
do Partido da Social Democracia Brasileira, o empresário Ricardo Semler, em um
artigo sugestivamente intitulado “Nunca se roubou tão pouco”, apontou até mesmo
para a redução da corrupção no âmbito das investigações que vinham sendo
protagonizadas no período do mandato anterior da Presidenta e que permanecem
até o presente:
“Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a
Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos
de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes
tentativas, nada feito.
Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem
qualquer um dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira
da cúpula.
Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris
sabia-se dos ‘cochons des dix pour cent’, os porquinhos que cobravam 10% por
fora sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas
passadas.
[...]
É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer
presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria
tido autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio
governo.” [13]
Uma tal declaração põe-nos
diante do perigo que o país venha ou viria a incorrer após um provável
impeachment da presidenta Dilma Rousseff, passando o Executivo para as mãos de
pessoas intimamente relacionadas à corrupção sistêmica: passagem da presidência
para Michel Temer, já “ficha suja” e suspeito de corrupção (e soa estranho que
o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, tenha pedido ao STF autorização
para investigar a Presidenta em virtude da delação do senador Delcídio Amaral,
mas não tenha feito o mesmo com relação ao vice-presidente Michel Temer,
amplamente acusado na referida delação); e, até pouco, a passagem da
vice-presidência, na prática, para Eduardo Cunha, réu em processo criminal em
andamento no STF (e também soa estranho que só anteontem, 05/05/2016, em
decisão tomada por unanimidade, às pressas, o STF tenha afastado esse deputado
do exercício do seu mandato, após ele ter cumprido a sua principal função na
conspiração, a de viabilizar a abertura do processo de impeachment): as
expectativas confiáveis são que ele(s) atue(m), com seus parceiros, para
obstruir investigações, “apaziguando” a polícia federal, o ministério público e
o judiciário, fazendo tudo voltar ao status quo ante: a “corrupção sistêmica”
garantida pela falta de investigações e punições adequadas.
Entretanto, as ilações sobre o
envolvimento da presidenta não foram admitidas no ato de recepção da denúncia
pelo então presidente da Câmara dos Deputados, que sequer recebeu a denúncia
com a imputação à Presidenta da República de supostos desvios que decorreriam
da reprovação das contas do Poder Executivo referentes ao ano de 2014 pelo
Tribunal de Contas da União. Inúmeros juristas já haviam manifestado que fatos
de mandatos anteriores não poderiam ser objeto de processo de impeachment. Não
obstante, por força de uma apressada ampliação da denúncia, em uma segunda
versão, restaram recebidas pelo presidente da Câmara a parte da denúncia
concernentes a falhas atribuídas à Presidenta da República no exercício de
2015: seis decretos de abertura de crédito suplementares sem autorização do
Congresso e um caso da chamada “pedada fiscal”.
Antes de tudo, cabe observar que
as contas do Poder Executivo em 2015 ainda não foram sequer objeto de parecer
do TCU nem de decisão do Congresso Nacional, sendo possível ainda a sua
aprovação pelas instâncias competentes. Além disso, decretos da mesma natureza
jurídica foram expedidos por presidentes anteriores, chegando a mais de uma centena
durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, mas as contas
sempre foram aprovadas pelo TCU, que apenas apontava para a necessidade de
saneamento e dava recomendações. Por exemplo, no Relatório e Parecer Prévio
referente ao exercício de 2002, o TCU enfatizava:
“Há que se destacar, no que se refere ao Poder Executivo, a
inviabilidade de se fazer uma análise mais efetiva no que tange à eficácia de
todas as ações relacionadas, devido à verificação de inúmeras inconsistências,
como por exemplo, informações errôneas ou incompletas sobre metas previstas e
realizadas.”[14]
A esse respeito, apontava-se
para problemas persistentes de gastos sem autorização pela Lei
Orçamentária:
“Sobre a realização de despesas acima do valor autorizado
pela Lei Orçamentária, cabe observar que, de acordo com a Lei 8.443, de 16 de
julho de 1992, as contas das unidades gestoras serão julgadas irregulares
quando demonstrarem ‘prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico,
ou infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira,
orçamentária, operacional ou patrimonial’.”[15]
Em geral, o Relatório advertia
para a “falta de transparência na visualização da programação orçamentária” e
apontava que o “momento” era de “alerta”[16].
Além disso, a conclusão sublinha
a “alteração para mais, mediante o Decreto nº 4.120/2002, dos Programas
Estratégicos definidos pela Lei Orçamentária de 2002”[17]. Essa falha é
esclarecida como repetida e persistente no corpo do Relatório de 2003:
“Cabe apontar que o aludido decreto foi sucessivamente
alterado, no decorrer do exercício, por outros decretos e portarias, que
incluíram e excluíram diversas ações, bem como alteraram sucessivamente os
limites orçamentários e financeiros, com acréscimos e reduções nos tetos
autorizados no período.
Tal como em 2001, pode-se constatar que nem todos os
programas e ações eleitos como estratégicos no Decreto 4.120/2002 e suas
alterações estavam contidos na programação prevista na LDO/2002, que definiu as
metas e prioridades da administração pública federal para o exercício, conforme
orientou a Magna Carta.
Não há perfeita congruência entre os programas e ações
estratégicos, a serem tratados com precedência na execução, e os programas e
ações prioritários, a serem tratados com precedência na alocação de recursos,
conforme fixou a LDO, de forma que constam programas e/ou ações na referida Lei
não contemplados no Decreto e vice-versa.
Reforçando os termos anteriores, recorde-se que a Carta
Constitucional define que a LDO estabelecerá as prioridades e metas da
administração pública federal para o exercício financeiro subsequente. Os
Decretos do Executivo, quando estabelecem precedência na execução de outros programas,
elegem nova categoria de prioridade, não prevista na
lei.”[18]
Observa-se do exposto que, não
só no exercício de 2002, mas também de 2001, Decretos do Presidente da
República, além de autorizar aumento de despesas em contrariedade à lei orçamentária,
estabeleceram ações e programas prioritários contrariamente às respectivas leis
orçamentárias.
Apesar dessas e de outras
“falhas”, persistentes e abundantes, o Parecer prévio do TCU referente ao
exercício de 2002, opinava nos seguintes termos:
“Considerando que as falhas verificadas, embora não
constituam motivo maior que impeça a aprovação das Contas do Poder Executivo
relativas ao exercício de 2002, requerem a adoção das medidas recomendadas,
observadas as ressalvas constantes da concussão do Relatório”.[19]
Esse modelo de parecer prévio
com ressalvas concernentes às falhas, reaparece, conforme os precedentes, nos
pareceres prévios do TCU referentes aos exercícios de 2003, 2004, 2005, 2008,
2009, 2012 e 2013, como esclarecem os juristas Jefferson Garús Guedes e Thiago
Aguiar de
Pádua:
“Mas o que ora importa observar é o que se deixou fixado nos
Pareceres Prévios: em caso de irregularidades constatadas, isto é, que todas
‘as contas são aprovadas com ressalvas’.”[20]
A mudança casuística da
jurisprudência do TCU em relação a essa matéria não poderia justificar a
responsabilização da Presidenta por crime de responsabilidade, pois a hipótese
fora tratada, no máximo, como falhas suscetíveis de saneamento. Qual o elemento
doloso nesse contexto? Nenhum. Antes caberia recuperar a exigência da
anterioridade penal, como uma garantia do Estado de direito também em face de
mutações jurisprudenciais, especialmente quando tal alteração não tenha nenhuma
justificação exigível para o overruling, ou seja, para a superação de
precedentes por novos argumentos surgidos com a transformação de circunstâncias
institucionais.
No que concerne à imputação de
caso de chamada “pedalada fiscal” no ano de 2015, concernente ao Plano Safra, a
situação é mais esdrúxula, pois o ato não está no âmbito de competência da
Presidenta da República. A esse respeito, são esclarecedoras as palavras do
jurista Ricardo Lodi Ribeiro, renomado especialista em matéria
jurídico-financeira:
“Em relação às pedaladas fiscais, que, como já demonstramos
nos referidos artigos desta coluna, não se confundem com operações financeiras
vedadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, cumpre considerar que, no caso do
único contrato imputado em 2015, relativo ao Projeto Safra, a sua regulação
compete ao Conselho Monetário Nacional, ficando a execução a cargo do
Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Banco do Brasil. Aqui, a
presidente da república, de acordo com as normas do legais do Projeto, não
possui qualquer atribuição. Nesse caso, se a norma que prevê o crime de
responsabilidade atribuído pelos autores da denúncia ao caso em questão
tipifica, no art. 10. 6 da Lei nº 1.079/50, a conduta de ordenar ou autorizar a
abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado
Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com
inobservância de prescrição legal, é de se perquirir: que atos praticados pela
presidente da república são imputados como criminosos? Ou que atuação
desta configura a conduta descrita no art. 11.3, de contrair empréstimo sem
autorização legal, que foi utilizada no parecer do relator da Comissão Especial
da Câmara para considerar esta atuação como crime de responsabilidade?
Nenhuma é a única resposta legalmente admitida pelo regramento do Projeto
Safra. No caso em questão, a gestão dos contratos não está na competência
presidencial, o que a impede de promover ou determinar a abertura de operação
de crédito. Até em razão disso, os denunciantes ou o relator não foram capazes
de apontar qualquer ato de abertura de crédito à presidente, já que a prática
deste não é a ela legalmente atribuída, sendo conduta estranha ao exercício das
suas funções, o que, por si só, inviabiliza a responsabilização da Chefe de
Estado, nos termos do art. 86, §4º da Constituição Federal.”[21]
Inclusive se admitidas
ilegalidades e inconstitucionalidade nas práticas da Presidenta, isso não
poderia, por si só, justificar a sua destituição por meio de processo de
impeachment. Não é qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade que justifica
a denúncia da Presidenta da República por crime de responsabilidade. Caso a
cada vez que a Presidenta editasse um decreto ilegal ou inconstitucional,
contrário à Lei orçamentária, à Lei de Reponsabilidade Fiscal ou qualquer outra
lei, ela já merecesse ser denunciada por crime de responsabilidade, toda e
qualquer Chefa de Estado estaria submetida a cada exercício ao processo de
impeachment. Na maioria dos casos, é suficiente a invalidação do ato ou a
determinação do seu saneamento por órgão de controle, seja jurisdicional, de
contas ou administrativo. Só em sendo algo patentemente atentatório à
Constituição, cabe discutir sobre a possibilidade de impeachment. Isso
significa que os crimes previstos nos incisos do art. 85 da Constituição e
tipificados na Lei nº 1.079/1950 devem ser compreendidos à luz do caput do art.
85 da CF, pertencendo a todas as hipóteses normativas a exigência de que
“atentem contra a Constituição Federal”.
Todo o casuísmo e artificialismo
para condenar a presidenta da República foi conduzido por um congresso em que
grande parte está envolvida em casos graves de corrupção. O então presidente da
Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (tardiamente afastado pelo STF), que
dirigiu o processo na câmara baixa, além de envolvido em gravíssimos atos criminosos
de corrupção, sempre atuou de uma forma parcial e fraudulenta, tanto para levar
a um rápido desfecho do ato de admissibilidade da acusação contra a Presidenta
na Câmara quanto para se livrar do Conselho de Ética que deve decidir sua
cassação por falta de decoro parlamentar. Corrupto graúdo, mancomunado com a
oposição, liderou uma cleptocracia hegemônica na câmara baixa para viabilizar a
abertura do processo de impeachment no Senado. Isso levou a uma matéria do New
York Times, que veio a enfatizar a posição de jornalista brasileiro de que “[a
Presidenta] não roubou, mas está sendo julgada por uma gang de ladrões”.[22]
Essa é uma afirmação baseada em amplas evidências que apontam para uma
conspiração a por em xeque a democracia brasileira.
A essas práticas conspiratórias
dos poderes legislativo e judiciário junta-se a parcialidade corrupta das
grandes organizações empresariais midiáticas. Descaradamente, elas têm assumido
um papel discriminatoriamente seletivo em suas matérias referentes ao atual
processo de impeachment. Destaca-se a TV Globo de televisão, cujos jornais
tornaram-se instrumentos fundamentais da campanha da oposição pelo impeachment.
O “Jornal das 10” da Globo News tornou-se o equivalente a um comitê eleitoral
de um partido ou coalizão derrotada. Essa postura discriminatória de
desinformação foi percebida por dois renomados jornalistas norte-americanos,
Glenn Greenwald, Andrew Fishman, e um brasileiro, David Miranda, em artigo no
qual se destacam os seguintes trechos:
“Ao contrário da descrição romantizada e mal informada (para
dizer o mínimo) do Chuck Todd e Ian Bremmer de protestos sendo levantados ‘pelo
Povo’, esses são, na verdade, incitados pela mídia corporativa intensamente
concentrada, homogeneizada e poderosa, e compostos por (não exclusivamente, mas
majoritariamente) pela parte mais rica e branca dos cidadãos, que por muito
tempo guardaram rancor contra o PT e contra qualquer programa social que
combate a pobreza.
A mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros
organizadores dos protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição.
Os perfis no Twitter de alguns dos repórteres mais influentes (e ricos) da Rede
Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando uma gravação de escuta
telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula vazou essa semana, o programa
jornalístico mais influente da Globo, Jornal Nacional, fez seus âncoras relerem
teatralmente o diálogo, de forma tão melodramática e em tom de fofoca, que se
parecia literalmente com uma novela distante de um jornal, causando
ridicularização generalizada nas redes. Durante meses, as quatro principais
revistas jornalísticas do Brasil dedicaram capa após capa a ataques inflamados
contra Dilma e Lula, geralmente mostrando fotos dramáticas de um ou de outro,
sempre com uma narrativa impactantemente unificada.
Para se ter uma noção do quão central é o papel da grande
mídia na incitação dos protestos: considere o papel da Fox News na promoção dos
protestos do Tea Party. Agora, imagine o que esses protestos seriam se não
fosse apenas a Fox, mas também a ABC, NBC, CBS, a revista Time, o New York
Times e o Huffington Post, todos apoiando o movimento do Tea Party. Isso é o
que está acontecendo no Brasil: as maiores redes são controladas por um pequeno
número de famílias, virtualmente todas veementemente opostas ao PT e cujos
veículos de comunicação se uniram para alimentar esses protestos.
Resumindo, os interesses mercadológicos representados por
esses veículos midiáticos são quase que totalmente pró-impeachment e estão ligados
à história da ditadura militar. Segundo afirma Stephanie Nolen, correspondente
no Rio para o canadense Globe and Mail: ‘Está claro que a maior parte das
instituições do país estão alinhadas contra a presidente’.
De forma simples, essa é uma campanha para subverter as
conquistas democráticas brasileiras por grupos que por muito tempo odiaram os
resultados de eleições democráticas, marchando de forma enganadora sob uma
bandeira anti-corrupção: bastante similar ao golpe de 1964. De fato, muitos na
direita do Brasil anseiam por uma restauração da ditadura, e grupos nesses
protestos “anti-corrupção” pediram abertamente pelo fim da
democracia.”[23]
Essas considerações enfáticas
nos põem diante do problema da falta de qualquer agência efetivamente
encarregada da observação das organizações empresariais de comunicação de
massa. Contra a criação de uma agência composta por membros da sociedade civil
e do Estado, levantam-se equivocadamente (quando não oportunisticamente) vozes
em nome das liberdades de expressão e de imprensa. Mas a liberdades de
expressão e de imprensa são primariamente direitos dos cidadãos e não das
empresas que exploram economicamente o jornalismo e a radiodifusão. Tais
empresas precisam ser observadas para que possam ser caracterizados os casos em
que tolhem a liberdade de expressão do cidadão. Não há nada de antidemocrático
(nem de “bolivarianismo” no sentido usado pejorativamente pelo status quo). O
país que mais preza a liberdade de expressão, os Estados Unidos da América,
conta com a Federal Communication Commission, que, entre outras atribuições,
tem competência para impedir que alguém inicie transmissão de “conduzir
investigações e analisar reclamações”[24], tendo praticado multa a emissoras de
televisão que recusaram a sua inspeção[25]. Além disso, o papel da FCC é
fundamental para evitar a concentração de poder em uma ou algumas organizações
empresariais midiáticas, não apenas por determinação do direito econômico de
concorrência, mas também em nome da pluralidade e diversidade na formação da
opinião pública, do direito à informação e também da liberdade de expressão dos
cidadãos. Isso tudo falta no Brasil em relação aos gigantes da informação, que
são antes instrumentos de lucro, do grande capital e de políticos oligárquicos
do que das liberdades de imprensa e de expressão, assim como do direito à
informação.
Nessas circunstâncias, o
processo de impeachment atua como um equivalente funcional a um golpe de
Estado. O objetivo é, na verdade, destituir a Chefa de Estado com base na
distorção de um instituto constitucional legítimo. Ao falar de equivalente
funcional a um golpe de Estado no sentido clássico da expressão, não descarto
ser também adequado afirmar-se que se trata de um golpe parlamentar, judicial e
midiático. Retomando e relendo aqui uma velha distinção de Louis Althusser e
entre aparelhos repressivos e aparelhos ideológico de Estado[26], um tanto fora
de moda, pode-se dizer que, enquanto na versão clássica do golpe, a dimensão
repressiva do aparato estatal sobressai, na versão atual, “moderna” ou (se
quiserem) “pós-moderna”, prevalece a dimensão ideológica de agentes estatais e
atores da sociedade civil. Em certos aspectos, esta talvez seja mais grave do
que aquela, pois envolve uma escamoteação ideológica que, pretensamente em nome
da constituição, distorce, corrói, erode a própria Constituição. O impacto de
políticos corruptos conduzindo o processo e um judiciário partidarizado poderá
levar a uma implosão da constituição e a um profundo descrédito das
instituições jurídicas, caso o impeachment seja aprovado.
Tudo isso é a expressão de uma
conspiração protagonizada por organizações empresariais midiáticas
corruptamente parciais, por um parlamento dominado por uma cleptocracia, um
Ministério Público ao mesmo tempo parcial e anfíbio, e um judiciário,
especialmente o Supremo Tribunal Federal, não apenas acovardado, mas sobretudo
politicamente capturado por um projeto golpista liderado em sua origem por um
gângster, ainda solto e, portanto, capaz de liderar os seus cúmplices e
manipular o processo.
Marcelo Neves
Professor
Titular de Direito Público da Universidade de Brasília - UnB. Doutor em Direito
pela Universidade de Bremen, com bolsa do DAAD (1991). Obteve livre-docência
pela Faculdade de Direito da Universidade de Fribourg na Suíça (2000). Foi
bolsista-pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt no Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Frankfurt am Main, Alemanha (2000). Foi Jean
Monnet Fellow no Departamento de Direito do Instituto Universitário Europeu, em
Florença, Itália (2000-2001).
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