Sabe o pior de tudo? Os mais pobres, que não foram às ruas nem a favor, nem contra o impeachment, e que acompanham bestializados pela TV ou pelo rádio os desdobramentos de nossa crise política, são os que mais vão sofrer a partir de agora.

Por Leonardo
Sakamoto
Uma
velha senhora me recebeu em sua humilde casa, na tarde desta sexta, aqui no
interior do Maranhão. Contou com detalhes a história do filho, assassinado a
mando de um fazendeiro que o escravizara.
Perguntei
se esperava por Justiça. Com resignação, balançou a cabeça negativamente. O que
ela quer é o direito de enterrar o corpo do filho, que nunca lhe foi entregue.
E, consequentemente, uma certidão de óbito para que o neto, que veio ao mundo
em meio ao desaparecimento, tenha, ao menos no papel, um pai. Quiçá uma pensão
para que o menino, abandonado depois pela mãe, possa ter algum alento.
Ao
final, quando deu a mão na despedida, me olhou e perguntou baixinho se eu
achava que a vida de seu neto seria melhor que foi a de seu filho.
A
garganta deu um nó. E eu, que milito no combate ao trabalho escravo há mais de
15 anos, respondi o máximo que pude no momento: um silêncio e um sorriso.
Sabe o
pior de tudo? Os mais pobres, que não foram às ruas nem a favor, nem contra o
impeachment, e que acompanham bestializados pela TV ou pelo rádio os
desdobramentos de nossa crise política, são os que mais vão sofrer a partir de
agora.
Em
nome do crescimento econômico e de alguma visão deturpada e egoísta de
desenvolvimento, visando a alegria e o bem estar dos mais ricos, estamos prestes
a limar alguns dos poucos direitos que garantem que as camadas mais vulneráveis
da população não se afundem ainda mais na merda. Pois as medidas se concentram
em retirar do andar de baixo e preservar o andar de cima.
O
Palácio do Planalto e o Congresso Nacional planejam rasgar direitos
trabalhistas e previdenciários e, ao mesmo tempo, impor limites para
investimentos em educação – alardeada, hipocritamente, como a saída para os
problemas nacionais, mas que é a primeira a sofrer cortes quando lucros e dividendos
correm perigo.
Há,
pelo menos, três projetos tramitando no Congresso Nacional para mutilar o
conceito de trabalho escravo. Ou seja, erradicar o crime retirando elementos
que o configuram. Os projetos contam com o apoio de associações empresariais,
agropecuárias, industriais e comerciais, incluindo até alguns patos amarelos,
que vêm no combate a esse crime um prejuízo a seus negócios.
Parlamentares
ruralistas afirmam que o conceito atual de escravidão contemporânea presente no
artigo 149 do Código Penal gera ''insegurança jurídica''. Querem que as
condições em que se encontram os trabalhadores, por mais indignas e desumanas
que sejam, não importem para a caracterização do crime, mas apenas se a pessoa
experimentou grilhões, correntes e pelourinho.
Ao
mesmo tempo, o governo Michel Temer apontou como uma de suas prioridades a
aprovação do projeto 4330/2004, que amplia a terceirização e legaliza a
contratação de prestadoras de serviços para executarem as atividades para as
quais as empresas foram constituídas (atividades-fim) e não apenas serviços
secundários, como é hoje. As relações deixam de ser entre patrões e empregados,
previstas e tratadas pelo direito do trabalho, e serão entre empresas e
empresas pessoais (''pejotização''), como se ambas fossem livres e iguais entre
si.
Pelo
projeto, a empresa contratante deve arcar com os direitos trabalhistas dos
empregados da contratada quando esta não for capaz. Na prática, pelo que já
acontece, isso terá que ser resolvido na Justiça – se e quando o trabalhador
decidir reclamar. A espera pode levar anos até uma decisão. E no caso de
trabalho análogo ao de escravo, em que muitas fazendas e empresas se utilizam
de cooperativas e empresas fajutas em nome de prepostos para burlar direitos
trabalhistas, esse projeto vai facilitar a impunidade das contratantes que, no
máximo, terão que bancar salários atrasados, mas sem punição pelos escravos
libertos.
Por
fim, o governo Temer propõe que a idade mínima para se aposentar seja de 65
anos. Enquanto a expectativa de vida de um homem no Maranhão é de, em média,
66. Ou seja, se um trabalhador não é derrubado pela violência de jagunços e
latifundiários que operam na mesma lógica desde sempre, não viverá o bastante
para desfrutar a própria aposentadoria apesar de ter, muitas vezes, acabado de
se trabalhar em atividades pesadas e insalubres.
Agora,
de frente ao computador, consigo escrever a resposta que não pude dar à velha
senhora no Maranhão – se a vida de seu neto será melhor que a de seu filho
assassinado. Caso o país siga o curso em direção às nuvens sombrias que se
avizinham no horizonte e se a resistência popular for espancada pela polícia e
taxada de terrorista pelo poder público, a resposta é não.
Não,
seu neto pode sim vir a ser escravo. Não, seu neto pode sim vir a ser
assassinado por reivindicar salários não pagos por alguém mais rico. Não, seu
neto pode sim se transformar em um arquivo empoeirado em algum canto na Justiça
porque não contará com caras bancas de advocacia. Não, o mundo que seu neto vai
herdar pode sim ser tão ruim quanto este em que seu filho viveu. Não, a vida
dele pode sim ser tão ruim ou curta que a do pai.
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