Cabo conhecido como 'Cachorro Louco'
teria participado mordendo as nádegas do paraquedista
O soldado paraquedista não quer se
identificar: denúncia gerou inquérito e está sendo investigada pelo Exército
POR ANTÔNIO WERNECK
O Globo

Há duas semanas, numa segunda-feira,
cabeça baixa, ele contou que desistiu de tudo depois de passar por uma sessão
de trote aplicada por um grupo de 18 militares, todos superiores. Uma espécie
de batismo sádico, no qual o calouro é submetido a um intenso espancamento com
os pés e mãos amarrados pelos veteranos. No caso do soldado, sem nenhuma chance
de defesa.
Durante cerca de dois minutos, o militar
conta que levou chutes e foi espancado, com uso de paus, pedaços de fios e de
plásticos pelos superiores. No fim, um dos agressores ainda gritou: “Soltem o
cachorro. Soltem o cachorro”. Neste momento, um cabo, conhecido no batalhão
pelo apelido de “Cachorro Louco”, partiu em direção ao soldado simulando ser um
cão e mordendo violentamente suas nádegas, arrancando pedaços.
Quando tudo acabou, restaram inúmeras
marcas e ferimentos pelo corpo. Já em casa, ele percebeu um sangramento no
pênis, que mais tarde levou à extração de um dos testículos por médicos do
Hospital Central do Exército (HCE), onde foi atendido.
— Fiquei muito machucado. Tive que
extrair um testículo e os médicos disseram que o segundo está comprometido e
também poderá ser extraído. Não vou mais conseguir saltar ou pular de
paraquedas. Além disso, estou sob tratamento psiquiátrico e psicológico para
tentar superar o que aconteceu. Eu sonhava em ser militar da Brigada
Paraquedista. Me esforcei para passar nos testes. Agora não quero mais. Não
tenho mais condições — afirmou o militar, pedindo para não ser identificado.
O caso do soldado não é o único. Nas
unidades militares do Rio, os registros são recorrentes. O próprio Exército
informou que entre 2014 e 2016 investigou cerca de cinco ocorrências de
maus-tratos, lesão corporal e outros excessos cometidos em unidades militares
do Estado do Rio. Já o Ministério Público Federal revelou que a Procuradoria
Regional dos Direitos do Cidadão no Rio está acompanhando outros cinco
registros de maus-tratos em unidades militares do Rio, com a suposta violação
de direitos humanos.
— O que aconteceu com o militar não foi
um caso de agressão ou maus-tratos. Foi tortura. Ele foi submetido a um intenso
espancamento com o pés e mãos amarrados, sem nenhuma condição de reação —
afirmou o advogado Marcelo Figueira, que foi procurado pela vítima e agora move
uma ação de indenização contra a União na 27ª Vara Criminal do Rio. — Estou
pedindo reparação por todos os danos físicos e psicológicos que meu cliente
sofreu.
OITO CABOS ENVOLVIDOS NA AGRESSÃO FORAM
AFASTADOS
Em nota, o Exército afirmou que o caso
do militar foi apurado em um Inquérito Policial Militar (IPM nº 04/2016)
instaurado pelo comandante da 27ª Brigada de Infantaria Paraquedista e que
gerou o indiciamento de oito cabos envolvidos. "Todos os militares
indiciados no referido IPM foram licenciados em 28 de fevereiro de 2017”, diz o
texto da nota. A Justiça Militar da União, por outro lado, recebeu a denúncia
feita pelo Ministério Público Militar em 14 de março de 2017, o que gerou um
processo em curso na 3ª Auditoria da 1ª Circunscrição da Justiça Militar. A
audiência de conhecimento está agendada para o próximo dia 10 de maio de 2017.
O Comando Militar do Leste (CML)
ressaltou ainda que o Exército “não compactua com qualquer tipo de
irregularidade, repudiando veementemente atitudes relacionadas a maus-tratos,
que contrastam com a imagem de uma instituição conhecida e respeitada pela
seriedade e transparência no trato de assuntos ligados à atividade militar”.
Revelou ainda que todos os casos dessa natureza são imediatamente apurados
pelos comandantes de organizações militares, em Inquéritos Policiais-Militares
(IPMs): “O envolvimento de militares do Exército em delitos de maus-tratos
ocorre de forma pontual e isolada. Sempre que há denúncias, a instituição
investiga e encaminha à Justiça Militar, a quem cabe julgar e aplicar penas”.
O soldado contou que se alistou no
Exército como voluntário em 2015 e queria servir na Brigada de Infantaria
Paraquedista. Depois de passar nos testes físicos e práticos, foi aceito na
unidade como soldado. O engajamento foi efetivado em maio de 2016.
— Foi aí que começou meu inferno. Fui
avisado do trote, conhecido como ‘‘baco”. Comecei a sofrer terror psicológico e
todo dia fugia do trote, até que um grupo me agarrou e me levou ao alojamento
dos cabos. Fecharam as portas e todas as janelas — disse o militar.
Imobilizado, teve os pés e mãos
amarrados até ser levado para o centro do alojamento. O espancamento começou
com um grito e 18 militares portando pedaços de paus, cordas e fios.
— Quando acabaram, disseram que era para
eu ficar calado e não denunciar ninguém — relatou.
Segundo o advogado, o militar foi mais
visado por ter porte físico avantajado:
— Ele sofreu mais que os outros por ser
muito forte. Chegaram a avisar antes que com ele seriam mais severos do que de
costume.
O militar é lotado na 2ª Companhia da
27ª Brigada de Infantaria Paraquedista, em Deodoro, onde há 60 soldados. Todos
deveriam ser submetidos ao trote.
— No dia que me espancaram, outros
soldados também passaram pelo mesmo castigo. Ser agredido violentamente por 18
militares durante dois minutos pode parecer pouco para quem bate. Para quem
apanha parecia uma eternidade — afirmou.
JUSTIÇA FEDERAL CONSIDEROU LESÃO
CORPORAL
As agressões sofridas pelo militar foram
comunicadas no ano passado como um caso de tortura ao Ministério Público
Federal do Rio (MPF). A denúncia acabou gerando um processo na 6ª Vara Federal
do Rio, mas não chegou a ser julgado. A juíza titular, Ana Paula Vieira de
Carvalho, considerou que o caso se trata de lesão corporal e declinou a
competência da Justiça Federal, encaminhando o processo à Auditoria Militar.
Procurada pelo GLOBO, a procuradora Ana Paula Ribeiro Rodrigues, do MPF, não se
manifestou.
Em 2015, um levantamento do GLOBO nos
processos da Justiça Militar do Rio mostrou que em dez anos, 299 casos em
unidades militares das Forças Armadas do Rio foram julgados. Eram relatos
graves de maus-tratos e lesão corporal nos quartéis do Exército, da Marinha e
da Aeronáutica, todos praticados por instrutores durante treinamentos. As
seguidas denúncias de excessos, que já levaram militares à morte durante
treinamento, provocou reação: a Procuradoria-Geral da Justiça Militar, em
Brasília, publicou uma recomendação nacional sobre o treinamento e os cursos
dados a tropas especiais, bem como os treinamentos especiais destinados às
tropas. Nela, lembra aos militares que eles deveriam evitar o castigo físico e
o trote durante os exercícios.
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