SYLVIA
COLOMBO
ENVIADA
ESPECIAL DA FOLHA DE S. PAULO AO MÉXICO
Dois homens praticavam jogging por volta
das 7h do dia 1° de setembro do ano passado, no parque de El Mirador, junto a
um cemitério em Iztapalapa, na Cidade do México, quando depararam com os corpos
de duas mulheres, nus e amarrados. Ambas eram jornalistas e tinham 48 anos;
morreram baleadas e estranguladas.
Marcela Yarce fundou a revista política
"Contralínea"; Rocío González Trápaga, ex-repórter da Televisa, o
maior grupo de comunicação do país, era free-lancer. A Procuradoria Geral de
Justiça do Distrito Federal aponta como a motivação mais provável das mortes as
reportagens da "Contralínea" sobre o narcotráfico.
Pela primeira vez, os ataques do crime
organizado contra a imprensa faziam vítimas fatais na capital.
Com 10 dos 103 jornalistas assassinados
no mundo em 2011, segundo o Instituto Internacional de Imprensa (IPI), o México
foi o país mais perigoso para o exercício do jornalismo -à frente até do
Iraque, com nove mortos. (De acordo com o mesmo levantamento, o Brasil teve
cinco mortes de jornalistas, empatado com Chile e Líbia. A América Latina
figura como a região mais perigosa do planeta para a profissão.)
E 2012 já começou sangrento: o primeiro
jornalista a perder a vida de forma violenta foi um mexicano. Na tarde de 6 de
janeiro, Raúl Quirino Garza, 30, repórter do jornal "La Última
Palabra", de Nuevo León, foi morto a tiros na região metropolitana de
Monterrey, a terceira maior cidade do país.
Além de repórteres e editores, os
próprios jornais vêm sendo ameaçados. Em 2011, em Coahuila, a sede de "El
Siglo del Torreón", que foge à regra por publicar nomes de autores de
crimes que noticia, sofreu um duplo ataque: um carro foi incendiado em frente à
sua sede, e o prédio foi alvo de tiros.
Em julho, corpos foram deixados em
frente às instalações dos jornais "Noroeste" e "El Debate",
em Sinaloa. A Redação do jornal "El Buen Tono", de Veracruz, foi
incendiada em novembro. Já no "El Sol de Chilpancingo", de Guerrero,
ocorreu um episódio mais inusitado. Um grupo de criminosos entrou na gráfica e
parou as rotativas, para evitar a publicação de uma foto que mostrava presos
numa operação do Exército.
GUERRA
O pesadelo mexicano não vem de hoje, mas
ganhou cores mais dramáticas em 2006, quando o presidente conservador Felipe
Calderón (Partido da Ação Nacional) deu início, no Estado de Michoacán, a uma
guerra contra os cartéis do tráfico.
Segundo o repórter e cronista Juan
Villoro, ao deflagrar a guerra, Calderón "traiu a população".
"Durante a campanha eleitoral, ele jamais tinha falado de guerra ao narcotráfico.
E a iniciou 14 dias depois da posse", disse à Folha. "Ele não foi
eleito democraticamente com essa proposta."
As ações de Calderón envolvem a Polícia
Federal e as Forças Armadas, além de apoio dos EUA (treinamento, comunicações e
inteligência). A resposta do crime à repressão vem na forma de execuções em
massa --segundo a Procuradoria Geral da República, em 2011 foram 12.903 mortes,
ou 48 por dia. Desde 2006, 47.515 perderam a vida em decorrência de conflitos
entre cartéis, ações do Exército ou ataques de criminosos contra civis.
É certo que a guerra às drogas será um
tema central nas eleições que acontecerão em julho. O governista PAN (Partido
da Ação Nacional) está em baixa, e Calderón, desgastado, não deverá conseguir
eleger sua candidata, Josefina Vázquez Mota. Até agora, o favorito é o
candidato do PRI, Enrique Peña Nieto. Também concorre o esquerdista Manuel
López Obrador, derrotado na eleição passada.
CHACINAS
As chacinas tornaram-se rotina no país.
Em Monterrey, em agosto de 2011, num acerto de contas entre cartéis, um grupo
de pistoleiros atacou um cassino e assassinou 53 pessoas.
Em setembro, traficantes abandonaram 35
corpos nas ruas de Veracruz. Em novembro, foram 25 em Sinaloa e 26 em
Guadalajara, às vésperas da Feira Internacional do Livro, o principal encontro
mundial das letras hispânicas.
O abandono de corpos na rua é uma forma
de marcar território e deixar "recados" a facções rivais ou ao
governo, além de espalhar o terror na população. As vítimas muitas vezes são
gente do povo, escolhidas a esmo.
Com os corpos, são deixadas
"narcomensagens" em pedaços de papelão ou pano, ou até mesmo com
sangue, diretamente nos cadáveres. Decidir se devem noticiar esse tipo de crime
--e assim passar as "narcomensagens" adiante-- tornou-se um dilema
para repórteres e editores de todo o país.
Em entrevista à Folha, um dos mais
experientes repórteres de guerra em atividade no mundo, o norte-americano Jon
Lee Anderson, que cobriu a guerra do Iraque e conflitos em favelas brasileiras
para a revista "The New Yorker", resume o dilema: "Com um
opressor tão poderoso quanto o submundo criminoso mexicano, é difícil forjar
uma estratégia de mídia que possa tanto oferecer a verdade para o público
quanto proteger a vida dos jornalistas".
CARTÉIS
Desde o desmantelamento dos principais
cartéis colombianos (Cali e Medellín), nos anos 90, o México passou de rota a
centro de logística do tráfico, o que fortaleceu seus próprios cartéis. Segundo
o repórter britânico Ioan Grillo, o tráfico lucra cerca de US$ 30 bilhões por
ano no país.
Grillo acaba de lançar o livro "El
Narco - Inside Mexico's Criminal Insurgency" [Bloomsbury, 256 págs., R$ 17
(e-book)], que reconstituiu a formação da rede que hoje leva cocaína da
Colômbia, do Peru e da Bolívia para os EUA.
O Departamento de Estado dos EUA aponta
que cerca de 90% da cocaína consumida no país chega pelo México, que ainda
produz heroína e maconha.
Radicado na Cidade do México há 11 anos,
Grillo enfatiza que se trata de uma construção de décadas e que seria
inadequado atribuir toda a culpa a Calderón. "Não se pode dizer que os
moradores do norte do México se tornaram assassinos psicopatas da noite para o
dia, depois de beber uma água ruim que lhes fez mal", escreve.
Humanizar as vítimas é um dos principais
méritos do livro de Grillo, ex-repórter da agência de notícias Associated Press
e da revista "Time". Depois de anos vendo corpos mutilados e
entrevistando vítimas e criminosos, concluiu que o noticiário do dia a dia
jamais daria conta do problema.
"Eu precisava escrever um livro. Só
assim teria como traçar um panorama do problema, que abarca vários aspectos da
sociedade", disse à Folha.
Ele entrevistou delinquentes no México e
na Colômbia e os fez contabilizar vítimas, relatar medos e especular sobre a
própria morte. Responsáveis por dezenas de assassinatos, alguns deles são
retratados com visão humana.
"É inevitável se envolver quando se
ouvem as razões da boca deles", explica Grillo. "Ainda mais se
estamos no ambiente deles, muitas vezes uma prisão, uma igreja onde se
refugiou, ou mesmo se ainda estão na ativa."
Pelo menos 15 cartéis se engalfinham no
território mexicano. Entre os principais estão os de Sinaloa, Tijuana, Zetas, a
Família Michoacana, Golfo e Milênio, cada um com subfacções. Grillo mostra que
o tráfico criou uma segunda indústria, a do assassinato, e que há matadores
especializados, muito jovens, que recebem por mortes de acordo com uma tabela.
No norte do país, um "sicário"
(matador de aluguel) recebe cerca de US$ 85 por alvo abatido. As variações
podem ser decapitação, esquartejamento e profanação de cadáveres (já foram
encontrados corpos com os órgãos sexuais arrancados e enfiados na boca).
FOGO
CRUZADO
"Trabalhamos num fogo cruzado entre
os ataques dos delinquentes e a pressão do governo", diz Sanjuana
Martínez, autora de "La Frontera del Narco" (Temas de Hoy). Repórter
premiada, ela trabalhou para o "Diário de Monterrey", para a Televisa
e para a revista "Proceso".
"O problema se acentuou depois que
os jornalistas deixaram um pouco de ser jornalistas para se transformarem mais
em vítimas", explica Juan Villoro. Reportar os fatos seria a reação mais
automática e, pelo menos em teoria, a mais correta.
Na prática, não é tão simples. Quem
assina um texto ou publica uma reportagem com denúncias de crimes está exposto
a pressões e ameaças. Além disso, há quem considere que difundir a violência
gera ainda mais violência.
"O tema que mais importa à
população hoje é a segurança. Portanto, o que há de mais importante a se fazer
hoje no México é informar sobre a escalada da violência", avalia Villoro.
"Acontece que isso também é o que
há de mais perigoso. Ou seja, trata-se de um dilema de difícil solução. Eu
tenho a convicção, porém, de que ficar em silêncio sempre é a pior saída."
ACORDO
Em março de 2011, o governo firmou com
as principais TVs, jornais e rádios do país um polêmico Acordo para a Cobertura
Informativa da Violência, celebrado num verdadeiro símbolo nacional, o Museu de
Antropologia, na Cidade do México.
Entre os signatários estão a Televisa, a
TV Azteca e jornais de grande tiragem como "El Universal",
"Excelsior" e "La Razón". Em linhas gerais, o texto propõe
critérios editoriais em comum, com o objetivo de não dar cartaz ao terror (leia
o acordo, em espanhol, em mexicodeacuerdo.org ).
O acordo estabelece regras como não usar
a linguagem dos criminosos (jamais escrever "levantado" em vez de
"sequestrado", por exemplo), não publicar "narcomensagens"
na íntegra, não mostrar reféns que estejam vivos, não assinar reportagens que
exponham o repórter ao perigo.
O item que mais causa discussão é o que
fala em "não interferir no combate à delinquência", o que pode vir a
coibir a investigação de ações policiais ou militares e é visto como ameaça à
liberdade de expressão.
"O acordo é muito confuso e
estimula a autocensura. Por outro lado, acho que há uma saturação com o tema e
as imagens da violência. A sociedade já não se comove, porque está muito
imersa", avalia Villoro. Para ele, o problema também é de linguagem:
"Não basta informar, é preciso contextualizar, explicar por que essas pessoas
tiveram um fim. Se não humanizarmos e politizarmos as mortes, nunca as
entenderemos."
ANESTESIA
Daniel Moreno Chávez, que dirige o
influente site animalpolitico.com, concorda com Villoro e acha que a imprensa
lida com uma sociedade anestesiada pelo excesso de sangue.
"A imprensa hoje oferece números,
estatísticas e relatos do horror, não conta as histórias dos que
morreram", diz. "Isso gera a sensação de repetição e uma reação de
rejeição. Estamos esvaziando o debate em vez de estimulá-lo."
Ele, porém, é favorável ao acordo: seu
site é um dos signatários. "O terrorismo busca divulgação. Se a imprensa
for mera difusora dos atos criminosos, estamos fazendo o que lhes interessa,
causando pânico."
O problema, para ele, não é o acordo,
mas a autocensura, que vem crescendo, principalmente em pequenos jornais de
Estados violentos, como Michoacán, Tamaulipas, Chiuaua e Sonora.
Nesses lugares "as notícias já nem
saem mais", diz Ricardo González, diretor da ONG Artículo 19, escritório
mexicano da britânica Article 19. E completa: "Pior: muitas vezes, são os
próprios traficantes que orientam como [as notícias] vão sair, mandam o lide, a
foto, a orientação para o texto. Eles já têm pequenas redações e gente
trabalhando com essa finalidade", conta.
A ONG presidida por González apoiou o
acordo proposto pelo governo e oferece treinamento a jornalistas que atuam em
meio à violência. Ele conta que o horror já chegou também para jornalistas que
usam meios digitais, como Elizabeth Macías Castro, 39.
Editora do jornal "Primera
Hora", de Tamaulipas, ela reportava ações de criminosos no Twitter e no
site nuevolaredoenvivo.es.tl sob o pseudônimo de La NenaDLaredo. Em 24 de
setembro, foi encontrada decapitada. Junto ao corpo, foram deixados fones de
ouvido, um teclado e uma mensagem que mencionava sua atuação na internet.
Em 25 de março, o fotógrafo Luis Emanuel
Ruiz Carrillo, 21, do "La Prensa de Monclova", de Nuevo León, e o
apresentador da Televisa, Luis Cerda Meléndez, 33, foram sequestrados ao sair
da sede da emissora em Monterrey. No dia seguinte, foram encontrados mortos,
com os olhos vendados, as mãos amarradas e tiros na cabeça. Ruiz Carrillo tinha
ido a Monterrey fazer uma matéria com Meléndez sobre sua trajetória de
ex-viciado convertido em estrela da TV.
GOVERNOS
"Há um perfil padrão entre
jornalistas mortos. São em geral de meios de comunicação locais e estavam
fazendo uma matéria sobre as relações do tráfico com governos, especialmente os
regionais. Só noticiar o tráfico, em geral, não provoca a reação dos
criminosos", diz González.
Mas o que isso quer dizer?
"Exatamente o que estou sugerindo: que os crimes muitas vezes estão
articulados com os governos locais. São em geral coniventes e, muitas vezes,
cúmplices."
Para Villoro, "é inverossímil
pensar que não exista cumplicidade entre poderes locais e o crime":
"Tamanha operação de produção e comércio internacional de drogas não seria
possível sem a conivência dos poderes locais".
"E a impunidade tem sido total. Não
conheço sequer um processo [que envolva governantes] em andamento", diz.
Segundo a Artículo 19, desde 2006 nenhum
criminoso foi condenado pela morte de jornalistas ou por crimes contra o
patrimônio de um jornal.
Dez pessoas foram levadas a julgamento,
mas todas as causas estão em aberto ou foram fechadas de modo inconclusivo.
LA REFORMA
O principal jornal do México, o "La
Reforma" (que não assinou o acordo), com tiragem diária de 141 mil
exemplares, faz uma boa cobertura da criminalidade e da ação do governo, mas
seu publisher não suportou a pressão e viu-se obrigado a mudar-se para os EUA,
por medo do tráfico.
Desde 2008, Alejandro Junco de la Vega,
um dos nomes mais respeitados do jornalismo local, passou a dirigir o jornal de
Austin, no Texas. O grupo "Reforma" edita "El Norte"
(Monterrey), "Reforma" (Cidade do México), "Mural" (Guadalajara)
e "Palabra" (Saltillo).
Procurado pela reportagem, o grupo
afirmou à Folha que, "por política editorial, não faz comentários sobre o
que acontece diariamente no país, pois esta é a informação que publica todos os
dias em suas páginas".
A "Proceso", revista que se
expõe como poucas, também não assinou o acordo. Na primeira semana de dezembro,
logo após a chacina de Guadalajara, estampou na capa a íntegra da
"narcomensagem" dos criminosos.
Os meios de comunicação que assinaram o
acordo preferem não falar, alegando que evocar a violência é fazer propaganda.
Embora defendam uma difusão "responsável" dos crimes, não condenam a
autocensura dos jornais regionais quando vidas estão em jogo.
"É fácil dizer que a imprensa deve
fazer mais alarde com os crimes quando não são os seus jornalistas que estão
saindo para a rua para morrer", disse à Folha o editor de um grande jornal
que não quis ter seu nome revelado.
CONTRA
A principal voz contra a posição dos
grandes meios de comunicação e do governo é hoje o poeta, jornalista e ensaísta
Javier Sicilia, 55. Em 28 de março do ano passado, seu filho Juan Francisco,
24, e cinco amigos foram mortos perto de Cuernavaca, capital do Estado de
Morelos.
Estudante de administração que
trabalhava numa clínica, Juan Francisco foi com os amigos a um bar. Horas
depois de terem saído, voltaram para pegar coisas que um deles havia esquecido.
No dia seguinte, os seis foram encontrados mortos. As suspeitas recaíram sobre
o dono do bar, acusado de envolvimento com o tráfico.
Depois do episódio, o escritor decidiu
abandonar a poesia e empreender caravanas para divulgar o caso, recolher
histórias de vítimas e divulgar sua causa.
"A imprensa não está dando voz às
famílias dos mortos, ninguém sabe como eles eram ou como sua vida terminou. Nós
fizemos isso", disse à Folha. "São pessoas feridas, abaladas,
precisam de ajuda, e contar o que aconteceu é uma forma de reparação."
Em maio, Sicilia saiu de Cuernavaca e
caminhou 100 km até o Zócalo, a histórica praça principal da capital, de onde
dirigiu uma mensagem ao presidente Calderón. Ele conta que a caravana foi
acompanhada por jornalistas.
"As matérias não saíram, mas o
problema não são os jornalistas, são os donos dos jornais. Eles sofrem pressões
ou são coniventes", diz. "Não dá para entender como este país pode
estar pensando em eleições numa situação como esta. Estamos no meio de uma
guerra."
Em 2011, na feira do livro de
Guadalajara, ele lançou "Estamos Hasta la Madre" (Ed. Planeta). Em
português, o título seria algo como "Estamos de saco cheio". Mais
direto ele não poderia ser.
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