A SANGUE FRIO
CARTA CAPITAL
POR MATHEUS PICHONELLI
O ar-condicionado do plenário Nagib
Haickel não arrefecia a tensão entre os deputados maranhenses reunidos na
sessão de quarta-feira 25. Dedos em riste, levavam para a sala climatizada a
temperatura de uma manhã quente e abafada, típica do outono em São Luis. O
motivo era a votação de um projeto para batizar uma avenida da cidade com o
nome de Jackson Lago, o ex-governador morto no ano passado e que durante anos combateu
a família Sarney – um projeto que em qualquer outra parte do mundo seria tema
para vereadores, e não deputados.
A aprovação da homenagem seria uma
afronta ao padroeiro, representado ali pela base aliada da filha, a governadora
Roseana (PMDB), e pelas palavras de sua lavra cravadas na parede frontal do
plenário: “Não há democracia sem Parlamento livre – José Sarney”.
Não parecia o mesmo plenário que, um dia
antes, levou praticamente toda a Assembleia Legislativa do Maranhão a vociferar
contra o ato de barbárie cometido contra Décio Sá, o blogueiro mais conhecido
do Maranhão – e, até a noite de segunda-feira 23, um jornalista praticamente
intocável.
O crime acontece exatos 15 anos após a
morte de um delegado, Stênio Mendonça, que chocou a população maranhense e deu
início à CPI do Crime Organizado – e anos depois resultou em prisões e na
cassação de deputados maranhenses. Pura ironia: foi durante a cobertura da CPI
que Décio e outros jornalistas da mesma geração, formados na metade dos anos
1990 na Universidade Federal do Maranhão, consolidaram o nome da mídia local.
A indignação dos deputados deu espaço,
no dia seguinte, à acalorada discussão sobre o nome da avenida. Aquela bolha de
ar climatizado a tapear a alta temperatura afora era só o primeiro sinal do
descompasso entre a realidade e a política da região.
Uma volta de dez minutos por São Luis é
suficiente para perceber que havia assuntos mais urgentes a serem discutidas no
plenário: da saída do aeroporto até a avenida Litorânea, onde o jornalista foi
alvejado, o índice de desenvolvimento humano oscila como se o veículo
circulasse entre o Sudão e a Suécia em poucos minutos.
Fora do belo prédio espelhado da
Assembleia, a preocupação não era com os nomes a serem colocados na avenida:
era a ação de grupos de extermínio a um estado já assolado pela miséria e
insegurança.
O estado emprega um policial para cada
grupo de 800 habitantes (a média brasileira é de um para 300). No campo, onde a
atuação policial é ainda mais limitada, a situação chega a ser assustadora: nas
contas da Comissão Pastoral da Terra, nada menos do que 85 pessoas estão hoje
ameaçadas de morte em razão de conflitos agrários em 29 municípios. No estado,
121 pessoas foram assassinadas desde 1985. Até hoje, apenas dois casos foram
julgados, e nenhum dos mandantes está preso.
Crimes por encomenda
O caso de Décio se somou a uma série de
assassinatos ocorridos desde outubro do ano passado. Naquele mês, um empresário
foi morto por reagir a uma tentativa de grilagem de um terreno de sua
propriedade numa das áreas mais valorizadas de São Luis. Com um tiro na nuca,
foi encontrado enterrado numa cova rasa aberta em seu próprio terreno.
Pouco depois, dois irmãos, empresários
de um grupo petroquímico, foram mortos por um motoqueiro que fugiu. Cerca de 15
dias atrás, um suposto traficante conhecido como Rato 8 (em referência aos oito
assassinados dos quais era suspeito) morreu numa emboscada montada por homens
armados dentro de um carro a cortar a mesma avenida onde Décio seria alvejado.
Outro crime da série foi registrado no
município de Buriticupu, onde o líder rural Raimundo Borges foi morto com cinco
tiros disparados por um motoqueiro. Em nenhum caso os mandantes ou executores
foram presos, embora a polícia garanta que as investigações estejam avançando.
“Isso virou uma prática comum. Agora
todos se deram conta da situação porque aconteceu com o Décio, uma pessoa
conhecida da cidade”, afirma Diogo Cabral, advogado da CPT e secretário da
Comissão de Direitos Humanos da seccional maranhense da Ordem dos Advogados do
Brasil.
Dessa vez os tiros acertaram um aliado
do grupo que se reveza no poder do estado há pelo menos 40 anos. Décio Sá era
notadamente um jornalista alinhado com a família Sarney – à boca pequena,
colegas contam que ele era o único jornalista do estado a ter acesso à área VIP
de Roseana Sarney na Sapucaí durante o desfile em homenagem a São Luis feito
pela escola samba Beija-Flor.
Ex-correspondente da Folha de S.Paulo e
depois colunista de O Estado do Maranhão, o diário da família Sarney, Décio
colecionava inimigos devido à exposição de uma certa incontinência verbal em
seu blog, um dos primeiros do estado. Por causa dele, transformou-se em persona
non grata em muitos círculos – que, no Maranhão, se agrupam de forma bem
delineada entre os amigos e inimigos dos Sarney.
No ano passado, não ousava aparecer na
Assembleia Legislativa, onde policiais em greve acampavam como protesto. De sua
trincheira, Décio emendava petardos em direção aos grevistas, que podiam ver o
diabo na frente, mas não o blogueiro. Da mesma forma, evitou acompanhar o
resultado da eleição para governador em 2006, quando Jackson Lago foi eleito.
Do lado de fora do Tribunal Regional Eleitoral, cabos eleitorais prometiam uma
surra no blogueiro caso aparecesse.
O jornalista Wilson Lima, repórter do
portal iG e ex-correspondente de diversos veículos no Maranhão, conta que Décio
era personagem até de charges publicadas nos jornais locais. Tudo por conta de
seu perfil perfil “folclórico”. Numa delas, era retratado como um “homem-bomba”
– um de seus bordões, ao fechar uma apuração, era que iria “detonar”
determinado alvo.
Recentemente, Décio comprou briga até
com os ex-colegas da Folha, atuando, segundo relato do próprio jornal, para
derrubar a pauta dos repórteres que desembarcavam na capital maranhense em busca
de noticias contra a família Sarney.
Em seis anos, se aproximou como pode do
clã, mas colecionou inimizades pontuais a cada novo post. Nesse tempo, ele
comprou briga até com cego que não era cego – quando revelou que um funcionário
do Tribunal de Justiça havia passado em concurso na cota de deficientes
alegando ser cego, o que Décio jurava de pé junto não ser verdade.
Décio era, segundo os colegas, uma
pessoa bem relacionada mas de poucos amigos. Costumava ir para os bares sozinho
para tomar suas long necks e estender o expediente por meio de telefonemas que
só cessavam na madrugada. Um de seus favoritos era o Bar Estrela do Mar, onde
foi morto. Ali, entre um telefonema e outro, ele costumava digladiar com as
patas de caranguejos servidos com vinagrete e arroz de toicinho.
Medo
A reportagem de CartaCapital visitou o
bar 36 horas após o crime. Apesar do clima de tranquilidade, ninguém ali
parecia disposto a falar sobre o caso: a atendente baixava a cabeça, sem olhar
para o repórter, quando questionada em qual mesa Décio estava sentado quando
morreu. Em plena hora do almoço, o restaurante, um simpático quiosque aos pés
da praia, estava vazio. O único movimento era de curiosos a diminuírem a
velocidade ao passar pela avenida – e o alvoroço dos funcionários ao se reunir
em frente ao aparelho de tevê para ver a fachada do estabelecimento estampada
no noticiário.
Casqueiro (a versão maranhense para
“marrento”), como descrevem os colegas, Décio não relatou, nos últimos dias,
qualquer menção às ameaças. Estava acostumado a desdenhar os comentários mais
acirrados que recebia em sua página eletrônica.
Décio tinha as costas quentes. Prova do
prestígio do jornalista, capa dos principais jornais do Maranhão no dia
seguinte, é que minutos após os disparos, o Bar Estrela do Mar já estava
cercado de jornalistas e autoridades, entre elas o próprio secretário de
Segurança Pública, Aluisio Mendes. A promessa de revide veio poucas horas
depois, quando, dizendo-se chocada, Roseana prometeu capturar os autores do
“ato de barbaridade”. Recuperando-se de cirurgia em São Paulo, Sarney pai
também se manifestou. Mesmo convalescente, condenou a atrocidade (ele não citou
as demais vítimas do desmando no estado) e declarou: o crime “atentava contra a
democracia”.
Desmoralizada, a polícia prometeu um
prêmio de cem mil reais para quem encontrasse o autor dos disparos. Não
explicitou o assassino deveria ser encontrado vivo ou morto.
Conflitos de terra. Queima de arquivo,
vingança, “bode expiatório”. O que não faltam, em São Luis, são palpites sobre
as razões do assassinato. Em seus últimos posts, o blogueiro havia noticiado
irregularidades na prefeitura de Turilândia, a prisão de assessores do Tribunal
de Justiça, irregularidades em prefeituras do interior e a suposta participação
de parlamentares em exploração sexual.
Mas a hipótese mais provável, levantada
pelos próprios colegas de trabalho, é que a morte esteja relacionada
indiretamente ao universo dos conflitos agrários. Dias antes de ser morto,
Décio havia publicado reportagens contra um empresário de Barra do Corda,
cidade do interior maranhense, suspeito de assassinar um líder rural. O
empresário é filho do prefeito da cidade e iria a júri se não fosse uma
estranha notícia publicada na véspera pelo blogueiro: quase todos os integrantes
do júri eram ligados à família do acusado.
A publicação, com nome e “parentesco”
dos jurados, melou o julgamento, afinal transferido para a capital – onde
imagina-se que o empresário terá menos chances de sair ileso.
Quando foi atingido, Décio falava ao telefone
com o vice-prefeito de Barra do Corda, Aristides Milhomem. Não parecia
preocupado com possíveis ameaças: sentado numa cadeira do corredor próximo ao
banheiro, estava desprevenido, de costas para a avenida, à espera de dois
amigos: o também blogueiro Luis Cardoso (anti-Sarney) e o suplente de vereador
Fábio Câmara, assessor da secretaria de Saúde do Maranhão. Entretido ao
telefone, Décio não deu importância ao sujeito que desceu de uma moto à sua
procura. Sem capuz ou óculos escuros, o que leva a polícia a suspeitar de que
fosse um forasteiro, o assassino percorreu o corredor estreito do bar e
conferiu onde estava o alvo. Passou por ele na ida ao banheiro. Na volta,
deixou a encomenda: seis tiros disparados com uma pistola calibre 40, de uso da
polícia. Em seguida, fugiu a pé, protegido pela ausência de câmeras de
monitoramento ou policiamento.
Para despistar, cortou os barrancos de
areia que serpenteiam a avenida e escondem os luxuosos prédios de uma área
nobre encravada num bolsão de pobreza. Por ali, as únicas testemunhas eram um
grupo de evangélicos a rezar no morro àquela hora da noite.
Ao saberem do burburinho sobre a morte
do blogueiro, a reação de vários colegas foi a mesma: pegaram o telefone para
tentar checar a notícia com a própria fonte.
Foram longos minutos em que o aparelho,
de uso pessoal, vibrou e berrou em vão numa mesa do restaurante: aos 42 anos,
Décio estava ao chão, com o rosto e o peito cravejado de tiros.
Morreu em combate: em uma das mãos, um
outro celular, usado para trabalho, estava colado ao ouvido.
Instinto. A morte a tiros do jornalista,
dentro de um bar de uma das mais movimentadas vias de São Luis, deixou
desnorteado o grupo de repórteres políticos da região. A sensação, resumida por
um deles, era: “se ele, que era querido pelos Sarney, morreu, imagine nós”.
O medo uniu, talvez pela primeira vez,
sarneyzistas e oposição.
Marco Aurélio D’Eça, blogueiro e
colunista político de O Estado, conviveu com Décio nos tempos de juventude, no
bairro João Paulo, e, anos mais tarde, na faculdade, nas redações e bares para
ouvir rock às sextas-feiras. As esposas são amigas e tiveram filhos na mesma
época – a mulher de Décio está grávida novamente.
Segundo D’Eça, a morte do colega deixou
em alerta o grupo de blogueiros do estado, formado por cerca de dez
profissionais que, sozinhos e com estilo próprio (embora ligados a seus
grupos), somam mais audiência que qualquer publicação local.
“Vou te dizer: estou com muito medo”,
diz o jornalista. “No jornal, nunca recebi processos. No blog, em poucos anos
já recebi cinco. Sem contar as ameaças: gente dizendo que sabe quem você é, o
que faz, onde anda.”
Apesar do medo, Gilberto Léda, também
blogueiro e repórter de política, é quem resume o espírito da imprensa
maranhense após o golpe: “Todos estamos assustados, nossos amigos e familiares
pedem para a gente ter cautela. Mas a tendência é não desanimar. Quando a gente
escolhe essa profissão, sabe dos riscos. Corremos riscos por puro instinto”.
No Maranhão, em que pese a influência
das oligarquias no jornalismo, este instinto é quase um ato de coragem: os
assassinos, estejam onde estiverem, estão soltos, protegidos e prontos para a
próxima.
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