Quatro dias após o AI-5, o ex-presidente da OAB, Cavalcanti, foi nomeado pela tirania para compor a Comissão Geral de Investigações (CGI) que pretendia extirpar a corrupção. Diversos presidentes regionais da Ordem juntaram-se às subcomissões de investigações nos seus estados. A CGI seria um fracasso mas esta é outra historia.
Por Ayrton Centeno
Houve quem se surpreendesse com a
decisão do Conselho Federal da OAB de apoiar o impeachment de Dilma
Rousseff. Mas quem sabe como a Ordem se
comportou 52 anos atrás recebeu a notícia até com certo enfaro. Zero de
espanto. Em 1964, o Conselho Federal da OAB saudou a deposição de João Goulart
e o fim abrupto do governo constitucionalmente eleito. Em êxtase, alegrou-se
com o golpe.
Quem afirma isto não é o reles escriba
mas…a OAB. Abre aspas: “Dessa forma, a Ordem recebeu com satisfação a notícia
do golpe, ratificando as declarações do presidente Povina Cavalcanti, que
louvaram a derrocada das forças subversivas”. É o que está registrado, com
todos os verbos e adjetivos, no próprio site do Conselho Federal (http://www.oab.org.br/historiaoab/estado_excecao.htm).
Então na presidência da OAB, o alagoano
Carlos Povina Cavalcanti “parabenizou a atuação do Conselho, considerando-a
lúcida e patriótica ao alertar, durante a reunião realizada a 20 de março, os
poderes constituídos da República para a defesa da ordem jurídica e da
Constituição”.
Com a palavra Cavalcanti, estendendo-se
um pouco sobre as razões da pregação golpista: “(…) antecipando-nos à derrocada
das forças subversivas, acionadas por dispositivos governamentais, que visaram,
em disfarces, a destruição do primado da democracia e a implantação de um
regime totalitário no qual submergiram todos os princípios da liberdade humana,
tivemos a lucidez e o patriotismo de alertar, na memorável reunião
extraordinária de 20 de março findo, os poderes constituídos da República para
a defesa da ordem jurídica e da Constituição, tão seriamente ameaçadas”.
Em outro trecho do documento reproduzido
pelo site, Cavalcanti argumenta que “(…) Sem sairmos da órbita constitucional,
podemos hoje, erradicar o mal das conjunturas comuno-sindicalistas e proclamar
que a sobrevivência da Nação Brasileira se processou sob a égide intocável do
Estado do Direito. Que a Providência Divina inspire os homens responsáveis
desta terra e lhes ilumine a consciência jurídica, pois que sem o direito, como
pregou Rui Barbosa, não há salvação”. É o que consta da ata da 1115ª. sessão
realizada em 7 de abril de 1964.
Neste precioso parágrafo, a OAB reproduz
um argumento recorrente durante o autoritarismo: o golpe foi dado para salvar a
democracia. Em outras palavras, implantou-se uma ditadura porque a ordem
democrática corria perigo e poderia ser substituída por um regime ditatorial.
Bingo!
Em alto e bom som, sente-se o eco da
novilíngua engendrada por George Orwell. No seu romance 1984, o nome das coisas
significa justamente o oposto do que se afirma. Bom é mau, paz é guerra,
liberdade é escravidão. Outro ingrediente da distopia orwelliana, o
duplipensar, também ingressaria na dança. É a capacidade de conciliar duas
crenças opostas ao mesmo tempo e de acreditar genuinamente na fabulação que
produz.
Como paradoxo pouco é bobagem,
Cavalcanti arremata proclamando, Ruy Barbosa a tiracolo, que “sem o direito não
há salvação.” Sob a tirania, o direito atenderia pelo nome curto e grosso de
AI-5. Mais Orwell.
Sete dias após o estupro da Constituição
ter sido visto como relação consensual, o Conselho Federal exultava. Na sessão
ordinária de 7 de abril, “a euforia transborda das páginas da ata que registrou
o encontro”, registrou a historiadora Denise Rollemberg, autora de Memória,
Opinião e Cultura Política. A OAB sob a ditadura (1964-1974). E prossegue: “A
euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia
do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal”. Em
júbilo, Cavalcanti chamou os conselheiros de
“cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição” e se
apresentava, orgulhoso, como “em paz com a nossa consciência”.
No livro Modernidades Alternativas, de
2008, a pesquisadora investigou o comportamento da OAB na primeira década da
ditadura. Em entrevista ao repórter Chico Otávio, de O Globo, sustentou que
aquilo que se conhece como a postura critica da Ordem ao poder militar somente
aconteceu a partir de 1972. Até então, oscilou entre o apoio aos generais no
poder, o mutismo e uma discreta desaprovação às prisões arbitrárias. Mais: nos
primeiros meses após o AI-5, o golpe dentro do golpe, editado em 13 de dezembro
de 1968, só uma voz se ergueu claramente contra a abominação, a do advogado
Heráclito Sobral Pinto. Voto vencido entre os conselheiros, Sobral apoiara a
derrubada de Jango e se arrependera. “No mais, o silêncio foi a resposta da
Ordem ao ato que eliminou o que ainda restara de direitos civis”, declarou
Denise Rollemberg ao repórter.
Foi um silêncio interessante. Quatro
dias após o AI-5, o ex-presidente da OAB, Cavalcanti, foi nomeado pela tirania
para compor a Comissão Geral de Investigações (CGI) que pretendia extirpar a
corrupção. O levantamento de Denise Rollemberg constatou que Cavalcanti não
estava sozinho. Diversos presidentes regionais da Ordem juntaram-se às subcomissões
de investigações nos seus estados. A CGI seria um fracasso mas esta é outra
historia.
Antes, mal o golpe assoprara a primeira
vela de seu bolo, e o vice-presidente da OAB, Alberto Barreto de Melo, resolveu
criticá-lo. Não pela repressão mas por repressão insuficiente. Reclamou que
antigos colaboradores do governo Goulart ainda continuavam na administração
pública. Era preciso alijá-los também. Garimpando as atas do CF, Denise
Rollemberg recolheu a manifestação da conselheira Maria Rita Soares de Andrade
que aplaudia a edição do AI- 2 “como um ato de legítima defesa ditado pelo
estado de necessidade em que se viu a revolução que tem o dever de preservar
seus objetivos”. Na época, o golpe atendia por “revolução” — Orwell mais uma
vez. Baixado em outubro de 1965, o Ato Institucional 2 reabriu processos de
cassação, extinguiu partidos políticos, determinou que funcionários públicos
estáveis seriam sumariamente demitidos se suas atividades não fosse
consideradas compatíveis com os objetivos do regime de força e consagrou a
intervenção direta do Executivo sobre o Judiciário.
Existe outro episódio espinhoso para a
história da OAB vinculado aqueles ásperos tempos. Em maio de 1964, ainda
através de Cavalcanti, ela participou da comissão designada pelo ditador
Castelo Branco para verificar a integridade física de nove membros de missão
comercial da República Popular da China. Resultado de acordo entre os dois
países, a missão estava no Brasil desde 1961. Detidos sob suspeita de
conspiração, os chineses tomaram 10 anos de cadeia. Cumpriram pouco mais de um
ano e com a ajuda gratuita do velho Sobral, novamente ele, conseguiram ser
repatriados. Não se sabe qual foi o parecer da comissão oficial mas o fato é
que os estrangeiros, como relatariam mais tarde, foram torturados.
Um deles, Ju Quingdong, funcionário da
agência de notícias Xinhua, contou que teve a casa arrombada, foi espancado,
ameaçado de morte e queimado com brasa de cigarros no Departamento de Ordem
Política e Social (Dops). Pisoteado na barriga, sofreu uma evacuação
involuntária. E os meganhas do Dops puseram a mão em todo o dinheiro que
possuía e que nunca mais viu. Em 2014, aos 84 anos, ele esmiuçou os suplícios à
Comissão da Verdade/RJ.
Se na alvorada do golpe, a OAB brindou
aos “homens responsáveis desta terra” que baniram “o mal das conjuras
comuno-sindicalistas”, mais tarde constataria o trágico resultado da sua
opção. No começo da tarde de 27 de
agosto de 1980, a secretária Lyda Monteiro da Silva, de 59 anos, abria a
correspondência do presidente do Conselho Federal da Ordem, Eduardo Seabra
Fagundes, quando uma carta-bomba explodiu, matando-a.
Entre uma e outra data, a OAB mudara.
Apesar de sua postura, no mínimo, ambígua durante os oito primeiro anos da
gestão ditatorial, o Conselho Federal, assegura
que, logo nos primeiros meses, começou a vislumbrar “a verdadeira face do novo
regime”. Em 1977, presidida por Raymundo Faoro, a Ordem empenhou-se pela
revogação da Lei de Segurança Nacional e do AI-5, a defesa dos presos
políticos, o fim da tortura. Também pelo retorno das garantias plenas da
magistratura e do habeas corpus, além da convocação de uma assembleia nacional
constituinte. Transformou-se, então, em alvo de terroristas de ultradireita,
contrários à abertura política. Nem parecia que aquilo tudo, que ajudara a
partejar com sua adesão entusiasmada, nascera “sob a égide intocável do Estado
do Direito”.
(*) Ayrton Centeno é jornalista
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