Famílias
que sofrem há 40 anos desapropriação de terras veem com insegurança acordo
sobre base de lançamento de foguetes
Mayara
Paixão
Brasil
de Fato
Desde o ano de 1983, mais de 150
comunidades quilombolas do município de Alcântara, no litoral maranhense, têm
suas vidas afetadas pela instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).
Sob o argumento de garantir a segurança das pessoas durante o lançamento de
foguetes, 312 famílias foram remanejadas de seus territórios tradicionais.
Na época, sob o governo autoritário do
general João Baptista Figueiredo, último presidente da Ditadura Militar
brasileira — de 1964 a 1985 —, nenhuma indenização foi dada a essas
comunidades.
Mãe de nove filhos, avó de 23 netos e
bisavó de 12 crianças, Luzia Silva Diniz tem 64 anos. Como ela mesma se define,
é “filha legítima da área que desapropriaram”. A agente de saúde é da
comunidade quilombola de Marudá, uma das desapropriadas na década de 1980.
Hoje, vive na área de assentamento da Força Aérea Brasileira (FAB), para onde
as famílias foram mandadas. Dona Luzia é crítica ao processo.
"Quando chegaram aqui, eles
prometeram que iam dar sustentabilidade para essas famílias, uma compensação,
cesta básica e segurança para todos na nossa comunidade. Isso não aconteceu.
Até hoje a gente vive na injustiça, porque nenhuma pessoa recebeu indenização
do seu quintal, das suas terras, como o meu pai. Ele era dono de uma parte da
terra, que nós hoje somos herdeiros, e nunca recebemos o dinheiro dessas
terras", relata.
Metade de sua vida foi destinada a
cobrar o direito às terras tradicionais e a reparação pelos danos materiais e
imateriais sofridos. Ao longo dos quase 40 anos de sua instalação, a base
funciona sem licença ambiental.
Com emoção, Dona Luzia relembra a época.
"Eu ia para lá e ficava de prontidão para exigir meus direitos. Queria
alimentação para meus filhos. E isso é triste. Quando eu me lembro me dá
vontade de chorar, eu fico emocionada só de me lembrar quantas vezes eu
caminhei para exigir os direitos dos meus filhos."
Governo
Bolsonaro
Após quase duas décadas de negociações,
o governo de Jair Bolsonaro (PSL) firmou um novo Acordo de Salvaguardas
Tecnológicas (AST) nesta segunda-feira (18) que concede o uso comercial da base
para os Estados Unidos.
Para as comunidades quilombolas, a
cessão ao país comandado por Donald Trump gera um cenário de incertezas.
"Para nós, hoje, saber que esse governo está entregando toda a nossa
riqueza a nível nacional, de soberania, para os estrangeiros, é um
desastre", afirma Diniz.
"Acho que se eles [Estados Unidos]
invadirem aqui Alcântara, e tomarem posse, nós vamos viver uma situação, talvez
pior, do que a que a gente já viveu", opina.
Para o quilombola e bacharel em direito
Danilo Serejo, a cessão para os EUA, na prática, retira o investimento nacional
na política espacial brasileira e é sinal de um projeto frustrado. "O
acordo Brasil-EUA para uso comercial da Base de Alcântara na verdade é um
atestado de fracasso dos militares."
História
que se repete
Danilo é da comunidade de Canelatiua,
que não foi desapropriada no conjunto de 1983. A área, no entanto, agora corre
esse risco pelo projeto de expansão da base.
Em 2010, o governo federal, a
Aeronáutica e o Ministério da Defesa requereram mais 12 mil hectares da área
litoral de Alcântara para a base e a instalação de três plataformas de
lançamento. Isso deslocaria cerca de 30 comunidades quilombolas, um total de
770 famílias, de sua região tradicional.
A parceria entre Brasil e Estados
Unidos, segundo nos conta, pode sinalizar a deixa para essa expansão. Além
disso, Bolsonaro já declarou a intenção de expandi-la.
O quilombola critica os moldes pelos
quais foi forjado o acordo com os Estados Unidos, sem diálogo com a população e
nem com a comunidade científica brasileira. "O que caracteriza toda essa
negociação realizada no governo Bolsonaro é o obscurantismo. Tudo tem sido
feito sem a menor participação e transparência."
Segundo denuncia Luzia Diniz, a possível
desapropriação de mais famílias aprofundaria o problema do sustento e
abastecimento dessas comunidades, que teve início nos anos 1980. Ela explica
que a principal fonte das comunidades é o peixe. Antes, as próprias famílias
pescavam, mas hoje precisam comprar de outras comunidades.
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Ladeira do Jacaré, no centro da cidade de Alcântara, que concentra grande parte dos quilombolas do país |
"Se a Aeronáutica entregar para a
base, eles vão tirar essas comunidades todas e nós vamos sofrer as
consequências também. Vamos ficar sem esse abastecimento. Se estamos comprando
peixe a 15, 20 reais, vamos passar a comprar mais caro o quilo", explica a
quilombola. "Nós não somos contra o desenvolvimento e o progresso, mas que
ele venha de forma que todo mundo fique feliz, e não para morrer de tristeza.
Estamos lutando desde que eles chegaram aqui", completa.
A aversão de Bolsonaro às comunidades
quilombolas e suas pautas de luta ficou evidente no período pré-eleitoral. Em
palestra no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, em 2017, declarou: “Se eu chegar
na Presidência (…) não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou
para quilombola”. Por outros ditos na mesma palestra, Bolsonaro foi denunciado
por racismo e discriminação pela Procuradoria-Geral da República (PGR). A
denúncia foi rejeitada posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Para Danilo Serejo, as exposições do
presidente não condizem com o esperado de um chefe de Estado. "Quando ele
faz esse acordo com os Estados Unidos, alijando totalmente as comunidades
quilombolas e a sociedade brasileira, inclusive a comunidade científica, de
qualquer discussão, ele faz a opção pelos valores antidemocráticos", diz.
O processo de titulação da área
quilombola de Alcântara está parado há mais de 10 anos. Em 2008, o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) publicou o Relatório Técnico
de Identificação e Delimitação, declarando que a área de 78 mil hectares seria
ocupada por descendentes de escravos. O ato, no entanto, ainda não foi
chancelado pelo governo brasileiro.
Próximos
passos
O tratado com os EUA, cujo teor ainda
não foi divulgado, agora deverá ser aprovado pelo Congresso Nacional para
avançar. Em 2000, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou uma
proposta parecida que foi vetada pelo Legislativo - com Bolsonaro votando
contra. Além do AST, foi também assinado um tratado de parceria entre a Nasa e
a Agência Espacial Brasileira (AEB) para cooperação em pesquisas de observação
climática.
O acordo, que pode demorar até quatros
anos para se efetivar, tem a perspectiva de render apenas US$ 10 milhões de
dólares para o Brasil. Segundo Bolsonaro, sem o acordo, o Brasil "estaria
perdendo dinheiro".
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