Suspeitava-se que
a Lava Jato era um grupo político articulado entre membros do Ministério
Público e o judiciário. Os indícios apontavam um conluio entre procuradores e
um juiz que atuava para influenciar o jogo político-partidário e manipular a
opinião pública. Faltava o batom na cueca. Não falta mais.
Os diálogos
revelados pelo Intercept mostram que a Lava Jato desfilava como uma deusa grega
da ética na sociedade, mas atuava à margem da lei na alcova. Em nome do combate
à corrupção, o conluio atropelou princípios jurídicos básicos e arrombou o
estado de direito. As provas são tão explícitas que não há mais espaço para
divergências.
A Lava Jato
usou indevidamente o aparato jurídico para atender interesses políticos. O
Código de Ética do Ministério Público, o estatuto da magistratura e a
Constituição foram todos burlados. É um caso claro de corrupção.
Durante o
processo que levou um ex-presidente para a cadeia, o juiz orientou, recomendou
alterações de estratégias, antecipou uma decisão e até indicou uma testemunha
para acusação. A defesa, que reiteradamente pediu a suspeição do juiz, fazia
papel de trouxa enquanto ele e o procurador combinavam estratégias de acusação
pelos seus celulares.
No grupo do
Telegram batizado de “Incendiários ROJ”, integrado por procuradores da Lava
Jato, Dallagnol demonstrava preocupação com a principal prova da acusação. A
convicção demonstrada em público contrastava com a insegurança no escurinho do
Telegram. As conversas mostram a obsessão de Dallagnol em manter o caso de Lula
nas mãos de Moro a qualquer custo. Os “incendiários” tinham plena consciência
de que estavam ultrapassando os limites da irresponsabilidade.
Moro e
Dallagnol enganavam a opinião pública quando em diversas oportunidades
garantiram a lisura do processo. O réu não teve direito a um julgamento justo e
imparcial. Os diálogos revelam uma articulação de estratégias para condená-lo
mesmo antes da apresentação da denúncia. O processo foi corrompido,
comprometendo o julgamento das instâncias superiores. Qualquer interpretação
diferente dessa está fadada ao ridículo e cairá na lata do lixo da história.
O juiz e os
procuradores se viam como heróis com uma missão: “limpar o congresso”. Mas essa
limpeza era seletiva. A Lava Jato criaria aliados na política. O então deputado
Onyx Lorenzoni dos Democratas se tornou um deles. Ele foi o principal apoiador
das “Dez medidas contra a corrupção” — o projeto de lei criado pelos
procuradores lavajatistas disfarçado de iniciativa popular.
Quando
perguntado pelo Estadão sobre a intenção de “limpar o congresso”, Sergio Moro
se mostrou inseguro. Primeiro não reconheceu a autenticidade da frase. Depois a
justificou. E, por fim, afirmou não lembrar se é o autor.
Estadão: Em um diálogo que lhe é atribuído, o sr. fala em
limpar o Congresso. O sr. reconhece essa fala como sua?
Moro: Não, não reconheço a autenticidade desse tipo de
afirmação. Vamos dizer assim, em uma conversa coloquial, pode ser até algo que
se diga “olha, tem um problema”. Vamos dizer que estamos falando de um
Congresso que na época tinha o Eduardo Cunha como presidente (da Câmara), uma
pessoa que comprovadamente cometeu crimes, tinha contas milionárias na Suíça,
então era uma situação bastante diferente. Mas eu não tenho como recordar se há
dois, três anos atrás eu tenha efetuado uma afirmação dessa espécie
O uso do poder
do Estado para interferir nas eleições também está explícito nas conversas
entre procuradores. Faltando 12 dias para a eleição, os lavajatistas traçaram
estratégias para impedir a entrevista de Lula e dificultar a vitória de Haddad.
Moro chega a
chamar réus de “inimigos” em uma conversa com Dallagnol. Está tudo ali,
textualmente. Meses depois, a Lava Jato emplacou um ministro da Justiça no
governo Bolsonaro. Onyx acabou virando colega de trabalho de Sergio Moro, que o
perdoou publicamente pelos casos de caixa 2 (inclusive o da JBS, uma das empresas
investigadas pela Lava Jato).
Haverá alguém
capaz de continuar negando as intenções políticas da operação?
Acreditava-se
que Moro trabalhava como linha auxiliar da acusação, mas ficou claro que ele
era o chefe da Lava Jato. Ele dava broncas, cobrava ações e recomendou a
Dallagnol que enquadrasse uma procuradora que apresentou mau desempenho nas
audiências. Dallagnol prestava reverências a Moro, muitas vezes usando um tom
messiânico: “A sociedade quer mudanças, quer um novo caminho, e espera líderes
sérios e reconhecidos que apontem o caminho. Você é o cara”.
Em um dos
trechos do vazamento, Dallagnol revela que teve uma conversa — “reservada, é
claro” — com o ministro do STF Luiz Fux. Nessa época, Moro tinha sido duramente
criticado pelo ministro Teori Zavascki, morto num acidente aéreo em 2017, que
questionou sua imparcialidade após a divulgação ilegal do áudio da conversa
entre Dilma e Lula.
Dallagnol conta
para os procuradores que “Fux disse quase espontaneamente que Teori fez queda
de braço com Moro e viu que se queimou”. Ou seja, segundo Fux, na queda de
braço entre um juiz de primeira instância que cometeu ilegalidade e um juiz da
suprema corte, venceu o primeiro. Esse é o tamanho do poder que Sergio Moro tem
sobre o judiciário brasileiro.
Dallagnol
revelou ainda que, segundo Fux, os procuradores da Lava Jato podiam contar com
ele o que fosse preciso. A força-tarefa contava com um homem de confiança no
STF. As palavras de Dallagnol deixam claro que Fux não se debruçaria sobre o
mérito no caso, mas atuaria de acordo com o que foi combinado com o conluio
lavajatista. Ao saber da conversa, Moro comemorou “In Fux we trust” (No Fux, a
gente confia).
As primeiras
reações de Moro e Dallagnol com a Vaza Jato foram reveladoras. Nenhum deles
negou as conversas, o que sugere uma confissão indireta da autenticidade.
Preferiram minimizar o conteúdo dos diálogos e investir na imagem de vítimas de
violação de privacidade.
Sergio Moro,
chamado de “russo” pelos procuradores, não viu “nada demais” na reportagem, mas
considerou “bastante grave” a “invasão e a divulgação”. Em entrevista a Pedro
Bial em abril, o ministro da Justiça deu uma opinião diametralmente oposta
sobre o vazamento ilegal da conversa entre Lula e Dilma: “o problema ali não
era a captação ilegal do diálogo e sua divulgação. O problema era o conteúdo do
diálogo.”
O desespero
tomou conta da força-tarefa. Três notas foram emitidas após a publicação da
reportagem, enfatizando a “ação criminosa de um hacker” — o que era apenas uma
suposição. Sem ter como negar os fatos, a Lava Jato iniciou uma guerra de
narrativas. Manchetes sobre hackers invadindo celulares de procuradores
passaram a pipocar no noticiário, numa tentativa de jogar areia nos olhos da
opinião pública. Relacionar essas invasões com o que foi publicado pelo
Intercept não serve a outro objetivo senão embaçar a realidade.
Moro e Lava
Jato mudaram a versão inicial. Passaram a dizer que os hackers poderiam ter
adulterado os conteúdos, mesmo após não terem negado nem uma vírgula. Essa não
vai colar. A força-tarefa teria totais condições de comprovar a adulteração.
Bastaria resgatar os arquivos das conversas no Telegram e comparar com o que
foi publicado. Curiosamente, a maioria dos procuradores que foram alvos de
ataque cibernético, incluído Dallagnol, tem relutado em entregar seus celulares
para a perícia da Polícia Federal.
A Globo, como
tem sido costume da imprensa nos últimos anos, abraçou integralmente a versão
lavajatista e atuou como gestora de redução de danos. Uma suposta invasão de
hackers ganhou mais relevância no noticiário global que o hackeamento da ordem
jurídica comandado pela Lava Jato. Minimizaram um fato e maximizaram uma
suposição.
No dia seguinte
à publicação da Vaza Jato, O Globo deu o mesmo peso de importância para as
“conversas de Moro com procuradores” e para a “ação de hackers”. Diferentemente
do que aconteceu em 2016, quando o jornal publicou a conversa entre Lula e
Dilma na capa do jornal sem sequer citar a ilegalidade do vazamento. Sergio
Moro e Globo estão sintonizados na mesma incoerência.
Capas
do jornal O Globo em 17 de março de 2016 e 11 de junho de 2019.
Carlos
Sardenberg, um dos principais colunistas do jornal, não viu nada demais nos
diálogos. Em sua última coluna, chamou o conluio entre juiz e acusador de
“coordenação formal de trabalho” e os métodos da Lava Jato de “inovação na
investigação”. Parece que Sardenberg combinou só com o “russo”. Faltou combinar
com a Constituição. Ele termina a coluna dizendo que o “pessoal do Intercept
Brasil não faz jornalismo. É pura militância”. Isso me leva a crer que o
jornalista não publicaria os diálogos se os tivesse recebido. Se dependesse
desse tipo de jornalismo, a população não saberia que funcionários públicos
atuaram à margem da lei.
Criou-se agora
um falso debate sobre a publicação dos vazamentos. Mas não existe dilema ético
quando se publica fatos de interesse público que os poderosos queriam esconder.
Essa é a função principal e mais nobre do jornalismo.
É importante
esclarecer que as revelações da Vaza Jato não provam a inocência de todos os
acusados pela operação. Prova apenas que a Lava Jato não é inocente e que os
processos comandados por ela estão contaminados por interesses políticos. Essa
não é uma história de mocinhos contra bandidos.
A Lava Jato
ganhou poderes imensos. Com apoio da imprensa e da população, conseguiu colocar
um ex-presidente na cadeia com provas frágeis, peitou o STF e emplacou um
ministro da Justiça. A força-tarefa chegou até a pleitear a administração de um
fundo bilionário privado, que seria financiado pelas multas pagas pela
Petrobrás.
Em nome de um
bem maior, boa parte do jornalismo brasileiro abdicou de fiscalizar esse que
hoje é o núcleo político mais poderoso do país. Preferiu atuar como porta-voz
da República de Curitiba. A história se encarregará de separar os jornalistas
que cumpriram o seu papel fiscalizador do poder dos que preferiram ignorar os
fatos e surfar a onda fácil do lavajatismo.
O apoio popular
estava ancorado na crença de que esses heróis trabalhavam com máxima
transparência e rigor ético. O povo foi enganado. Não foi à toa que Sergio Moro
perdeu 10 pontos de popularidade logo após à Vaza Jato.
Mas o ministro
da Justiça de Bolsonaro ainda é a figura política mais popular do país. Mesmo
com os fatos escancarados, ainda vai demorar para o mito se desfazer.
Divindades não são desconstruídas do dia pra noite.
Sergio Moro
sonhou entrar para a história como Giovanni Falcone, o juiz da Operação Mãos
limpas que enfrentou a máfia italiana. Mas pode acabar como o justiceiro
“russo”, um miliciano jurídico que hackeou a ordem constitucional para combater
seus “inimigos”.
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