domingo, 16 de novembro de 2008

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE: NORTE-SUL - FERROVIA DAS FRAUDES

PF e TCU apontam irregularidades na construção na Norte-Sul, um projeto de R$ 3 bi incluído no PAC. O sobrepreço na obra chegaria a R$ 516 milhões

Aliado de Sarney no centro das investigações

Lúcio Vaz
Enviado especial
Edson Luiz
Da equipe do Correio

Araguaína (TO) — Investigações da Polícia Federal e do Tribunal de Contas da União (TCU) apontam indícios de sobrepreço, superfaturamento, fraude em licitações e tráfico de influência na construção da Ferrovia Norte-Sul em Tocantins e Goiás, uma obra de R$ 3 bilhões, incluída no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O TCU aponta um sobrepreço de R$ 516 milhões, o que corresponde a 22% do valor total de 16 lotes investigados. A partir de escutas telefônicas, inquérito da PF aponta o envolvimento do diretor de Engenharia da Valec, Ulisses Assad, com empresários que teriam recebido subempreitadas na obra de forma irregular. O diretor é citado no inquérito como “homem forte” do grupo na área de licitações da Valec, estatal responsável pela construção da Norte-Sul. O inquérito registra que Assad teria sido indicado para o cargo pelo senador José Sarney (PMDB-AP) e foi diretor da Companhia de Águas e Esgotos do Maranhão (Caema), durante o governo Roseana Sarney. O líder do grupo seria o empresário Fernando Sarney, filho do senador Sarney. Durante o monitoramento telefônico, foram capturados diálogos que “deixam clara a participação de Ulisses no ‘esquema’ e que o mesmo seria um membro da organização criminosa infiltrado no governo”, diz o relatório da PF. A empresa Lupama, dos empresários Gianfranco Perasso e Flávio Barbosa Lima, ligados a Assad, recebeu uma subempreitada da construtora Constran, no valor de R$ 46,2 milhões, num trecho de 105 quilômetros entre Santa Isabel e Uruaçu, em Goiás. A Polícia Federal apurou que o endereço da empresa Lupama, sediada em Imperatriz (MA), é o de uma residência e que a construtora “não teria capital social sequer para construir uma ponte, quem dera assumir a parcela na construção de uma ferrovia, num contrato do patamar de R$ 250 milhões”.

Por intermédio da sua assessoria, o senador Sarney afirmou que nem ele nem o seu filho Fernando se manifestariam sobre a investigação da PF, consideraram um caso encerrado. Com base no inquérito, o Ministério Público Federal chegou a solicitar a prisão de Fernando Sarney, medida que foi negada pela Justiça. Procurado pelo Correio, Assad não se manifestou. A reportagem não encontrou os sócios da Lupama nos endereços que constam no inquérito da PF.

Sobrepreço
Após analisar contratos de 16 lotes no trecho Aguiarnópolis/Palmas, o TCU apontou “indicação clara de restrição à competitividade das licitações, caracterizada pela inusitada exigência de experiência em fornecimento de dormentes, vedação à formação de consórcios e limitação à participação da mesma empresa em mais de dois lotes por licitação. Disso decorre, ao que tudo indica, que as obras vêm sendo loteadas entre um restrito grupo de empresas. Duas empresas foram habilitadas em cada um dos 16 lotes, sendo que, em quatro deles, apenas uma restou habilitada”.

Segundo o relatório do ministro-relator, Valmir Campelo, “a falta de competitividade entre as empresas é materializada nos elevados preços praticados, muito próximos aos previamente inflados orçamentos-base elaborados pela Valec. Tal fato é evidenciado pelas propostas comerciais com descontos irrisórios, como, por exemplo, aquele apresentado pela (empreiteira) SPA para o lote 5: apenas 0,06%. No geral, o desconto médio nos lotes analisados foi de somente 0,91%, índice impensável em ambiente de real competição, e ainda levando-se em conta o sobrepreço do próprio orçamento”. O sobrepreço é identificado pelos técnicos ainda na fase do projeto, já o superfaturamento ocorre quando houve o pagamento de projeto executado com preços acima dos de mercado.

Diante dos indícios de sobrepreço médio de 22%, o TCU determinou a retenção cautelar de 10% nos futuros pagamentos, para não comprometer a execução dos contratos, considerando que “as obras são de importância estratégica para a economia no país e que estão incluídas no PAC”. A Valec apresentou imediatamente recurso contra a decisão do tribunal. Campelo ironizou a atitude da estatal: “A meu ver, as maiores interessadas em requererem a reversão da cautelar seriam as próprias empresas contratadas, e não a estatal contratante. Não residiria razão legítima à Valec em intentar um recuros contra uma decisão que não atinge diretamente nenhum direito da estatal”. O recurso foi negado pelo plenário do TCU em 2 de outubro deste ano.

DINHEIRO PÚBLICO

Desvio até no preço da britaExtração é feita em pedreira própria ao custo de R$ 21 o metro cúbico, mas que é cobrado a R$ 55. Dormentes estão superfaturados

Lúcio Vaz Enviado Especial

Araguaína (TO) — Os indícios de superfaturamento na construção da Ferrovia Norte-Sul foram encontrados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no pátio da Valec em Araguaína, no Lote 5. A análise do contrato do trecho entre Babaçulândia e Córrego Galvão, no valor de R$ 295 milhões, tocado pela SPA Engenharia, apontou um sobrepreço de 28,7% no orçamento-base elaborado pela Valec, estatal responsável pela obra. Esse sobrepreço teria resultado de preço excessivo dos dormentes, pagamento de brita extraída como se fosse brita comercial e índice excessivo de bonificações e despesas indiretas (BDIs), que fixa a margem de lucro das empresas. No pátio da Valec em Araguaína há uma montanha de brita que será utilizada no Lote 8. A equipe de auditoria observou que a empresa estaria sendo remunerada pelo transporte rodoviário da brita, quando na realidade realiza parte do transporte por via ferroviária, utilizando-se da própria linha e construção. O estoque de brita localizado no pátio de Araguaína está sendo transportado por meio de vagões ferroviários até o Lote 8, como o Correio pode comprovar. Além disso, a empresa estaria sendo remunerada a preço de brita comercial (R$ 55 o metro cúbico), embora esteja fazendo a extração em pedreira própria (R$ 21 o metro cúbico).

A reportagem registrou a retirada da brita na pedreira de Babaçulândia. Segundo o TCU, tais acertos entre a construtora e os engenheiros da Valec não estariam sendo levados ao conhecimento do Conselho de Administração da entidade: “Informações constantes em documentos oficiais, como as justificativas de aditivos e medições, não se verificam em campo”. A auditoria cita que o Conselho de Administração aprovou um termo aditivo considerando que a brita a ser utilizada no Lote 8 seria obtida de uma pedreira comercial localizada a 87km, em Presidente Kennedy. “Ocorre que, na realidade, a brita está sendo extraída da pedreira Babaçulândia, localizada a cerca de 10km do pátio de Araguaína, onde o material está sendo estocado para posterior transporte ferroviário pela própria Ferrovia Norte-Sul, a um custo muito inferior”. Dormentes O tribunal informa que o item dormentes é o de maior peso nas obras de Norte-Sul, representando mais de 20% do valor dos contratos. Nas licitações dos lotes 5 a 9, a Valec não elaborava composições de preços unitários para fazer seus orçamentos-base. Considerava apenas médias de preços de certames anteriores, o que conduzia a “grandes distorções, reproduzindo os exageros contidos naquelas planilhas. A Valec propiciava às empresas a oportunidade de compor seus orçamentos da maneira que melhor lhes aprouvesse, inclusive aumentando preços já exorbitantes”. O preço da Valec variou de R$ 312 a R$ 319 por unidade, enquanto o preços das propostas vencedoras variou de R$ 312 a R$ 377. Para os lotes 12 a 15, a Valec estabeleceu o preço-base em R$ 370,75.

A SPA apresentou preço de 370,08, enquanto a Andrade Gutierrez propôs R$ 367,84. Apenas a Iesa apresentou proposta bem abaixo: R$ 313,20. O TCU apurou o custo de produção de cada dormente: R$ 223 em abril de 2007. Retroagindo à época da assinatura dos contratos, o preço caiu para R$ 195,07. Nos nove trechos analisados, o sobrepreço atingiu R$ 194 milhões. A auditoria também apurou o pagamento por dormentes não utilizados. Em média, em cada quilômetro são instalados 1.666 dormentes, com espaço de 60 cm entre um e outro. Em alguns trechos, havia pouco mais de 1,5 mil dormentes por quilômetro, mas a Valec fazia o pagamento como se fossem os 1.666. O Correio percorreu 40 quilômetros Lote 5 e confirmou a fraude. No Km 380, havia espaços de até 68cm entre os dormentes. No Km 404, onde estavam instalados apenas 1.551 dormentes, o espaço chegava a 74cm entre um e outro. A auditoria apurou que o Lote 15 teria sido licitado com um excedente no número de dormentes correspondente a 10 quilômetros (16,66 unidades). O TCU apurou que o BDI do Lote 5 foi fixado em 57,83%, muito superior ao valor de referência do Sicro (20,25%), que fixa os preços da construção civil. A construtora orçou a bonificação em 15,7% do custo direto, enquanto o Cicro considera um lucro de 6%. “Isto é, a Valec permite às construtoras uma lucratividade 163% superior àquela adotada em obras ferroviárias executadas pelo Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit)”, diz o relatório. O tribunal acrescentou que, e decorrência dos orçamentos-base “inflados”, tornou-se possível a apresentação, pelas empresas, desses elevados percentuais de BDI. Esses índices variaram de 35%, no Lote 15, da Iesa, a 96% no Lote 9, da Odebrecht.

Memória

De governo em governo - A Ferrovia Norte-Sul foi lançada em 1987, no governo do presidente José Sarney. Logo no início, reportagem da Folha de S.Paulo, revelou a farsa na licitação para a construção da ferrovia. O jornal antecipou, em anúncio cifrado publicado no jornal, o resultado da licitação. Com orçamento de R$ 3 bilhões (a preços de hoje), a obra foi paralisada dois anos depois de iniciada, por falta de dinheiro. Ficou pronto apenas o trecho de 96 quilômetros entre Açailândia e Imperatriz, no Maranhão, terra de Sarney. Os trabalhos foram retomados no governo Itamar Franco. O trecho de 215 quilômetros entre Estreito e Açailândia foi concluído e entrou em operação comercial em 1996.

Conectada à estrada de ferro Carajás, esse trecho permitiu o acesso ao porto de Itaqui, em São Luís. Até 2002, já no governo Fernando Henrique Cardoso, foram construídos mais 119 quilômetros, entre Imperatriz a Aguiarnópolis (TO). A Norte-Sul ganhou novo fôlego no governo Lula, recebendo uma injeção de R$ 700 milhões. Em maio do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inaugurou o trecho de 114 quilômetros de Aguiarnópolis a Araguaína (TO). O trecho Araguaína-Guaraí, com extensão de 226 quilômetros, tem conclusão prevista para o fim deste ano. A etapa entre Guaraí e a divisa com Goiás, totalizando 497 quilômetros, deve ser concluído até o fim do próximo ano.

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