Moradores vasculham escombros em busca de
documentos, dinheiro e lembranças de uma vida inteira
HUDSON CORRÊA
REVISTA ÉPOCA/DE MARIANA
A dona de casa Graciethe Isabel Viera, de 54 anos,
estava na porta de casa quando Marquinhos, um vizinho, chegou de moto gritando:
"a barragem rompeu, vai inundar tudo aqui. Corre, Baixinha!" Eram
16h30 de 5 de novembro. Graciethe entrou para buscar o sogro, mas José Dunga,
de 90 anos, desdenhou: "deixe de ser boba, está muito longe, isso não
chega aqui não". O sítio ficava no vilarejo de Camargos, a menos seis
quilômetros do distrito de Bento Rodrigues, o primeiro a ser arrasado pela lama
despejada com o rompimento das barragens de Fundão e Santarém, em Mariana,
Minas Gerais. Ela puxou o sogro e com ele aos tropeços subiu o morro coberto de
árvores nos fundos do terreno. De lá, viu o barro cobrir a casa até o telhado e
se lembrou dos quatro quilos de doce de limão que acabara de fazer, a primeira
encomenda desde que concluíra o curso de doceira, dos retratos do pai morto
recentemente e do cachorro Barão, que não teve tempo de salvar. Barão, o fiel
companheiro da família, estava preso a corrente por causa de um ferimento na
perna. Não pode fugir. Morreram também dez cabeças de gado, porcos e galinhas.
O pasto se transformou em um mar de lama mal cheirosa. Por onde passou, a onda
de rejeitos da Samarco, empresa formada pela sociedade de duas das maiores
mineradoras do mundo, a Vale e a BHP Billiton, destruiu pontes, transformou as
águas límpidas de rios em uma substância marrom pastosa e abriu crateras na
vegetação de Mata Atlântica que cobre a região. Deixou 10 mortos e 18
desaparecidos.
Após a tragédia, Baixinha se mudou para uma casa
vazia, na parte alta do vilarejo, emprestada por um vizinho. O sogro foi para
Belo Horizonte ficar com a neta, estudante de economia de 22 anos. O desejo de
Baixinha era deixar a região para sempre. Tem a sensação de que a qualquer
momento pode dar de cara com outra onda gigante de lama. Mas o marido, Geraldo
Dunga, de 58 anos, não quer ir embora. Desde a inundação, ele percorre alguns
quilômetros numa trilha aberta no morro e chega à propriedade destruída, onde
ainda restam alguns porcos e galinhas para cuidar. Diz que quando banhou as
galinhas na bica que desce da encosta, elas pareciam pesar uns cinco quilos por
causa do barro grudado. Geraldo Dunga caminha entre os destroços acompanhado
das cadelas Senzala, Florentina e Certeza que fuçam o barro. No começo da tarde
de quarta-feira, ÉPOCA conversou aos gritos com ele, distante 50 metros,
isolado por uma faixa de lama que tragaria quem tentasse atravessá-la. Quando
se está atolado já na altura do joelho, mesmo um homem forte não consegue se
livrar facilmente, nem com a ajuda de outros.

Geraldo Dunga tinha vacas leiteiras e fazia o
transporte de alunos para colégios de Bento Rodrigues e localidades vizinhas.
"Não temos mais queijo, nem leite, nem a escola", diz Baixinha. Só
restou o medo. Agora, segundo ela, funcionários da Samarco percorrem a região
alertando moradores que, se houver novo rompimento de barragem, uma sirene
soará e todos deverão correr para a igreja na parte mais alta. Há duas outras
barragens na região, a de Germano, com capacidade de armazenamento ainda maior
do que as duas que se romperam, e a Cava de Germano. Qualquer barulho assusta
Baixinha, até mesmo o do vento sacudindo a lona que cobre o teto da igreja,
destelhada há algum tempo.

Na quarta-feira, em Mariana, a 25 quilômetros de
Bento Rodrigues, correram boatos de que Germano estava prestes a vir abaixo.
"Ah, eu não vou para aquele lado, não", disse Gilson Silva, motorista
local contratado por ÉPOCA. Ele só se tranquilizou quando a rádio local passou
a avisar de hora em hora que não havia risco, informação transmitida pela
Samarco. A especulação também era assunto no bar de Erico Jorge, na rua
principal de Camargos, uma das poucas não atingidas. Dois funcionários de uma
empresa de telefonia estacionaram o carro, pediram uma coca-cola e contaram a
novidade: quase uma semana depois do rompimento das barragens, estavam
instalando um sistema que permitiria à Samarco acionar sirenes para alertar a
população em caso de risco. ÉPOCA esteve no local onde foi colocada uma antena,
que emitirá sinais para disparar os alarmes, mas uma caminhonete da Samarco
bloqueava a entrada. Equipes da mineradora circulam em camionetes a toda
velocidade pelas estradas da região para identificar moradores que tenham sido
atingidos. Com olhares tensos, se afastam ao encontrar jornalistas.
O agricultor Aroldo Zeferino Arantes, de 63 anos,
começou a sentir cheiro de óleo quando escurecia no vilarejo de Ponte do Gama,
a 40 quilômetros de Bento Rodrigues. Passava um pouco das 18h e ele não
entendia o que era aquela massa escura, cheirando a óleo, que avançava em
direção ao seu sítio. Mais de duas horas depois do rompimento em Bento
Rodrigues, ninguém em Ponte do Gama recebera qualquer tipo de aviso sobre o que
acontecera. Mesmo sem saber do que se tratava, entendeu que tinha pouco tempo
para agir. Sua primeira preocupação foi com a mãe de 93 anos, uma senhorinha
que caminha bem e que se orgulha de colocar a linha no buraco de agulha melhor
do que o filho. Antes de a lama tomar conta de tudo, ela teve forças para se
refugiar na parte alta de uma plantação de eucalipto. Com a mãe em um lugar
seguro, Arantes começou a tocar os animais para longe, em direção ao morro, mas
não conseguiu evitar a morte de alguns deles.


Por volta das 18h do dia do rompimento das
barragens, um helicóptero com dois bombeiros pousou em um campo de futebol no
distrito de Paracatu, a 55 quilômetros de Bento Rodrigues. Um grupo de
policiais chegou por terra. Eles gritavam para os moradores deixarem as casas
rapidamente. O agricultor José Patrocínio de Oliveira, de 86 anos, conhecido
como Zezinho, teve apenas cinco minutos para pegar os documentos pessoais e
subir à parte alta com os filhos. No guarda-roupas, soterrado logo depois,
ficaram suas economias – R$ 3 mil – e seus bens mais preciosos: os instrumentos
musicais e as fantasias da Folia de Reis, festa que realiza há 50 anos em
Paracatu, onde nasceu e teve 24 filhos.


Dezenas de cães famintos fuçam o barro. Na
superfície há dezenas de galinhas mortas e o cheiro indica que há mais animas
soterrados. Uma equipe do Corpo de Bombeiros passa pela fogueira de Lourival e
volta pouco depois com um porco resgatado, amarrado em um pau que trazem ao ombro.
Os cachorros fuçadores acompanham, somem de novo e voltam a aparecer, mais
sujos ainda. Zezinho não parece preocupado e abraça seu cachorro sujo de lama.
O tsunami de lama derrubou a ponte numa das estradas
de acesso a Bento Rodrigues. Outro trecho da via foi destruído por pedras de
até quatro metros. Carro não passa. Dá para seguir a pé por um trecho curto,
mas os rejeitos despejados pela mineradora impedem uma aproximação do antigo
distrito. A solução é dar uma grande volta, percorrendo o dobro da distância.
Mas a poucos metros do vilarejo a Polícia Militar montou uma barreira com
contêiner, holofote acoplado a um gerador e um micro-ônibus. Um sargento
informa que o aparato é para evitar que pessoas, mesmo os antigos moradores,
atrapalhem as buscas do Corpo de Bombeiros. Só um tipo de veículo está
autorizado a ultrapassar o bloqueio: as caminhonetes da Samarco.
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