Gangues
se tornaram 'governo paralelo' em presídios, diz professor
"Gangues
não mantêm a ordem em presídios porque são boazinhas. Não estão fazendo isso do
nada, mas para prever alguma ordem e o incentivo do lucro", afirma David
Skarbek

da BBC/Uol
O trabalho de um economista de 34 anos está sendo visto como a melhor tentativa em muito tempo de explicar como as gangues dominam prisões pelo mundo, da Suécia à Bolívia.
O americano David Skarbek, professor do
King's College de Londres, usa ferramentas da economia - como a chamada teoria
da escolha racional - para mostrar como esses grupos se formam e regulam o
crime dentro e fora dos presídios.
O livro de estreia de Skarbek recebeu em
junho o prêmio de melhor livro de economia política dos últimos três anos,
oferecido pela prestigiada Associação Americana de Ciência Política.
Lançado pela Universidade de Oxford e
ainda sem tradução no Brasil, The Social Order of the Underworld - How Prison
Gangs Govern the American Prison System (A Ordem Social do Submundo - Como
Gangues de Prisões Governam o Sistema Prisional Americano, em tradução livre)
desafia a noção comum que vê as gangues de prisões americanas como bandos
criados por presos apenas para promover racismo e violência.
Pelo contrário: tais grupos, afirma ele,
se mantêm exatamente para criar ordem e lucrar onde o Estado não quer ou não
consegue atuar.
Das gangues étnicas da Califórnia (Máfia
Mexicana, Irmandade Ariana, Família Negra) ao PCC (Primeiro Comando da Capital)
no Brasil, o pesquisador descreve no livro e em outros estudos organizações
sofisticadas que criam hierarquias, controlam o contrabando nas prisões e
solucionam conflitos internos.
Como sujeitos econômicos racionais,
sustenta Skarbek, esses grupos fazem tudo isso por um motivo básico: dinheiro.
Por ele, vale até moderar o uso da violência.
"Quando as prisões estão calmas e
estáveis, as gangues fazem muito dinheiro. Elas podem vender drogas quando não
há confusões em larga escala, então têm incentivo para prevenir homicídios e
rebeliões. Elas querem lucrar e reconhecem que mantendo certa ordem podem fazer
isso", afirmou Skarbek em entrevista à BBC Brasil em Londres.
Isso permite entender, diz ele, como
lugares em que a população carcerária explodiu passaram a ter sistemas
prisionais mais "calmos", com menos motins e homicídios.
Um retrato desse fenômeno, diz Skarbek,
se dá na Califórnia, foco principal de sua pesquisa. O Estado americano
quintuplicou sua população carcerária desde 1970 (de 25 mil para 130 mil), mas
a taxa de assassinatos de presos caiu quase 100% no mesmo período, que coincide
com o boom das gangues.
Ou em São Paulo, também alvo dos estudos
de Skarbek, que diz ver sentido na hipótese que identifica o PCC como principal
responsável pela queda de 73% nos homicídios no Estado desde 2001 - nessa
interpretação, a facção transpôs às ruas as regras de controle da violência que
criara nas cadeias.
Como
a economia explica a sociedade
Skarbek é um discípulo de uma escola de
pensamento conhecida como teoria da escolha racional, que busca explicar o
comportamento humano como resultado de decisões tomadas por atores econômicos.
Ele já tinha usado a teoria econômica,
por exemplo, para entender por que escravos africanos iniciavam poucas revoltas
quando eram transportados aos montes em navios negreiros - dados mostram que
apenas 2% a 10% das viagens transatlânticas registraram motins de 1750 a 1775.
Quando mais escravos, mais provável
seria uma revolta, certo? Na verdade era o contrário: barcos menores e com
menos escravos registravam mais motins. Isso se explica, diz Skarbek, por uma
questão básica de economia: o problema do caroneiro (free rider), aquele que se
beneficia de algo sem ter arcado com os custos daquilo.
"Num grande navio, a possibilidade
de um escravo sozinho ser a pessoa decisiva (numa revolta) é quase zero. E como
os castigos eram brutais, o escravo se colocava em alto risco ao se
revoltar", afirma. Em barcos menores e com menos escravos, portanto, era
mais fácil evitar os "caroneiros" e incentivar a participação em
motins.

Origem
das gangues
Aplicando essas ferramentas ao mundo do
crime, o professor procurou responder uma questão básica: por que existem
gangues nas prisões hoje e não havia no passado?
Nas cadeias dos EUA, por exemplo, não
havia gangues nos anos 1950. Em 1985, eram 114 gangues ativas em 49 Estados,
com quase 13 mil membros. Em 1992, essa população havia triplicado para 46 mil,
e hoje é estimada em 308 mil - quase 15% do total de detentos.
Ao analisar uma montanha de dados
(estudos e relatórios, histórias de presídios, dados desclassificados do FBI,
biografias de presos e carcereiros, inquéritos e peças judiciais), Skarbek
concluiu que, no caso da Califórnia, houve uma mudança na "gestão"
das prisões pelos detentos.
À medida que a população carcerária
cresceu e as prisões se tornaram maiores e mais diversas racial e etnicamente,
uma forma mais descentralizada de autocontrole, baseada no antigo "código
do prisioneiro", perdeu espaço para a mão de ferro centralizada das
gangues.
"O Código do Prisioneiro era
basicamente um guia informal de comportamento: não roube, pague suas dívidas,
não mexa em assuntos dos outros. Se você o seguia, estava numa posição boa,
tinha apoio mútuo. O que importava era a reputação do preso. Mas isso se
tornava frágil e falho em prisões com milhares de detentos, onde é impossível
acompanhar todos", diz Skarbek.
Um novo detento pode se surpreender com
o nível de controle das gangues. No norte da Califórnia, por exemplo, a gangue
hispânica Nuestra Família usa linhas de pescar para enviar questionários às celas
dos novatos.
Sem
saída
O livro conta uma história de um detento
latino para ilustrar o dilema de presos quando chegam a presídios tomados por
gangues.
Com pouco conhecimento de inglês, Juan
Pablo Reyes cumpria uma sentença curta por ter ameaçado a mulher. Como não era
membro de gangue nem criminoso perigoso, foi encarregado de fazer pequenos
serviços no presídio.
Um dia, um carcereiro o acusou de furtar
cartas alheias. Ele negou, mas agentes disseram que só o perdoariam se ele
delatasse presos que portavam drogas. Reyes disse que não conhecia ninguém e
foi espancado pelos agentes.
Depois foi levado, nu, a uma ala com
membros de uma gangue hispânica que tinha como regra atacar detentos latinos
não-americanos. Acabou sofrendo agressões tão graves que foi colocado em
liberdade dois meses antes do previsto.
"O incidente ilustra uma das razões
pelas quais presos buscam formas alternativas de gestão: você não pode sempre
confiar nos guardas", escreve Skarbek.
Como muitos outros grupos mafiosos, as
gangues prisionais surgiram para oferecer proteção. Cadeias são ambientes
hostis (em 2011, 64% dos presos na Califórnia tinham condenações por crimes
violentos, como estupro e homicídio) e muitos criminosos fora do sistema
prisional preferem pagar "taxas de proteção" para gangues mesmo antes
de ir - ou voltar - para a prisão.
No caso de bandidos perigosos, como
tendem a cumprir sentenças mais longas, há forte interesse em garantir proteção
a longo prazo na cadeia. As altas taxas de reincidência (acima de 50% em 1994)
também oferecem incentivos para criminosos continuarem a pagar essas taxas em
liberdade.
"Na Califórnia, o detento não tem
alternativa a não ser se ligar a seu grupo racial, que está organizado em
gangues de rua ou prisões. Se você tentar seguir sozinho, será logo alvo de
ataques. Esse é o dilema que leva as pessoas a se aproximar dessas gangues",
afirma Skarbek.
"Quando são presos, hispânicos no
sul da Califórnia sabem que a máfia mexicana controla as cadeias. As gangues,
basicamente, conseguem ameaçar pessoas que não estão na prisão: vocês sabem que
estarão detidos em algum ponto, colocaremos seu nome na lista, se não pagar
taxas sobre suas vendas, vamos te atacar quando for preso", completa.
Mecanismo semelhante atua no caso do
PCC, que tem presença em 22 das 27 unidades da Federação e arrecada ao menos
US$ 50 milhões por ano, segundo dados coletados por Skarbek. A facção possui
seus próprios "tribunais do crime" e os "disciplinas",
membros designados para lidar com filiados que não obedecem suas regras.
Comércio
ilegal
Gangues florescem quando o governo não
consegue suprir suas necessidades - sejam elas de segurança ou de consumo. Em
um ambiente de escassez, o comércio - de itens como telefones, cigarros e
outras drogas - adquire uma importância chave. O departamento prisional da
Califórnia confiscou 12.151 celulares só em 2013, o que dá uma ideia da
dimensão desse mercado.
"Na Califórnia, você não pode fumar
nem usar celular nas cadeias. Significa que se você quiser usar tabaco, terá
que recorrer à economia subterrânea, controlada pelas gangues. Ao proibir o
fumo, criamos uma oportunidade de lucro para gangues. Presos demandam certas
amenidades, e se a prisão não provê, seja tabaco, segurança ou telefone, presos
irão canalizar essa demanda para a economia subterrânea, mandando mais dinheiro
e influência para as gangues."
Campeões de encarceramento, com
respectivamente a primeira (2,2 milhões) e quarta (622 mil) maior população
carcerária do mundo, Estados Unidos e Brasil estão usando a receita errada para
combater as gangues, avalia Skarbek.
A estratégia equivocada, diz ele, é
motivada pela crença de que o problema das gangues, para usar o jargão
econômico, é de oferta, ou seja, pessoas más que fazem coisas ruins. Nesse
raciocínio, a saída seria "suprimir" essas pessoas, colocando-as em
unidades separadas, de alta segurança.
"Transferir essas pessoas, e
conheço resultados no Brasil e nos EUA, não resolve o problema. Pode levar as
gangues para outras cadeias, como num câncer em metástase, e outros assumem o
lugar dos que são transferidos. Temos gangues por todo o sistema, apesar dessas
estratégias. É um fracasso."
Para Skarbek, é preciso que as prisões
sejam menores e mais seguras. E ele vai além ao afirmar que é preciso pensar
soluções para cortar as fontes de recursos das gangues.
"Acho, por exemplo, que devemos
deixar presos fumarem ou usarem cigarros eletrônicos. Tecnologicamente podem
criar telefones especiais para detentos", afirma o especialista.
No caso das drogas ilegais, ele
reconhece que é um assunto polêmico, mas cita o caso de um ex-carcereiro que
defende a liberação nas prisões e cita unidades em países nórdicos que oferecem
opióides a detentos viciados.
"Não estou defendendo isso, mas se
fosse o caso, agentes prisionais poderiam prover maconha e opiáceos de graça,
de forma legal e num ambiente controlado, com efeitos negativos limitados para
quem está fora. Quando a receita diminui, membros de gangues teriam menos em
jogo. Parece algo de ficção científica, mas é preciso pesar todos os custos e
benefícios", diz ele.
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