Em documento distribuído a todos o
ministros da Corte máxima, Associação dos Procuradores da República afirma que
'causa perplexidade ao País a desenvoltura com que Gilmar Mendes se envolve no
debate público, dos mais diversos temas, fora dos autos, fugindo, assim, do
papel e do cuidado que se espera de um Juiz'
Julia Affonso, Fausto Macedo, Luiz
Vassallo e Beatriz Bulla
O Estado de São Paulo
Em carta aberta aos ministros do Supremo
Tribunal Federal, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR),
atacou o ministro Gilmar Mendes. A maior entidade de procuradores do País,
responsável pela lista tríplice a cadeira de Procurador-Geral da República,
defendeu a força-tarefa da Operação Lava Jato do Rio e criticou a
‘desenvoltura’ com que Gilmar Mendes ‘se envolve no debate pública, fora dos
autos’.
O embate entre Gilmar Mendes e o
Ministério Público ganhou dimensões elevadas quando o procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, pediu a suspeição do ministro no caso do bilionário
Eike Batista.
No dia 28 de abril deste ano, Gilmar
concedeu habeas corpus pedido pela defesa de Eike para suspender os efeitos da
prisão preventiva e soltá-lo. O empresário estava preso em Bangu, no Rio, desde
janeiro, pela Operação Eficiência, um desdobramento da Calicute, operação que
levou à prisão o ex-governador do Rio Sérgio Cabral e sua mulher, Adriana
Ancelmo.
Após a decisão do ministro, Janot pediu
ao Supremo que Gilmar fosse declarado impedido de atuar no habeas. De acordo
com o procurador-geral da República, logo depois da decisão de Gilmar Mendes,
surgiram questionamentos sobre a “isenção do ministro” para atuar no caso, já
que a sua mulher, Guiomar Mendes, integraria o Escritório de Advocacia Sérgio
Bermudes, “que prestaria serviços ao paciente Eike Fuhrken Batista, beneficiado
pela decisão do magistrado”.
Em 21 de agosto, Janot pediu novamente a
suspeição de Gilmar. Desta vez, no caso do ‘rei do ônibus’. O ministro concedeu
dois habeas corpus em 24 horas ao empresário Jacob Barata Filho. Gilmar colocou
em liberdade outros oito investigados da Operação Ponto Final – desdobramento
da Lava Jato, no Rio, que prendeu a cúpula do Transporte do Estado.
Janot viu ‘múltiplas causas’ para a
suspeição de Gilmar no caso do ‘rei do ônibus’. O ministro foi padrinho de
casamento de Beatriz Barata, filha de Jacob, em 2013. Bia Barata se casou com
Francisco Feitosa Filho, sobrinho de Guiomar Mendes. O Ministério Público
Federal apontou ainda que Jacob Barata Filho integra os quadros da sociedade
Autoviação Metropolitana Ltda, ao lado, entre outros sócios, da FF Agropecuária
e Empreendimentos S/A, administrada por Francisco Feitosa de Albuquerque Lima,
irmão de Guiomar e cunhado do ministro Gilmar Mendes.
CARTA ABERTA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS
PROCURADORES DA REPÚBLICA AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Excelentíssimos Senhores Ministros,
Em nossa língua pátria, “supremo” é o
que está acima de todos os demais. É o grau máximo. Em nossa Constituição,
evidentemente não por acaso, a Corte que Vossas Excelências compõem é a cúpula
do Poder Judiciário. É a responsável, portanto, por dizer por último e em
definitivo o direito. Seus componentes – Vossas Excelências – estão acima de
corregedorias, e respondem apenas a suas consciências. E assim tem de ser, em
verdade, posto nosso sistema jurídico.
Isto traz, todavia, permitam-nos dizer,
enorme responsabilidade, pois nos atos, nas decisões, no comportamento e nos
exemplos, Vossas Excelências são e têm de ser fator de estabilidade. Vossas
Excelências são, em larga medida, a imagem e a pedra em que se assenta a justiça
no País.
De outra banda, o Tribunal – em sábia
construção milenar da civilização – é sempre um coletivo. Cada um de seus
componentes diz o direito, mas é o conjunto, a Corte, que o forma e configura,
pela composição e debate de opiniões. O erro é da natureza humana. Mas
espera-se – e sem duvida nenhuma logra-se – que o conjunto de mulheres e homens
acerte mais, aproxime-se mais da Justiça. É lugar comum, portanto – e seria
incabível erro pretender argumentar isso com o STF, que tantas vezes na história
recente provou ter perfeita consciência de seu papel fundamental no País; aqui
vai o ponto apenas porque necessário para a compreensão dos objetivos da carta
– que a instituição, o Tribunal, é maior do que qualquer de seus componentes.
Postas estas premissas, instamos a que
Vossas Excelências tomem o pedido público que se segue como um ato de respeito,
pois assim o é. É do respeito ao Supremo Tribunal Federal e do respeito por
cada um de seus componentes que exsurge a constatação de que apenas o Supremo
pode conter, pode corrigir, um Ministro da própria Corte, quando seus atos e
exemplos põem em dúvida a credibilidade de todo o Tribunal e da Justiça. Não se
pretende aqui papel de censores de Membros do Supremo. Não existem corregedores
do Supremo. Há a própria Corte. Só o próprio Tribunal pode exercer este papel.
Excelentíssimos Ministros, não é de hoje
que causa perplexidade ao País a desenvoltura com que o Ministro Gilmar Mendes
se envolve no debate público, dos mais diversos temas, fora dos autos, fugindo,
assim, do papel e do cuidado que se espera de um Juiz, ainda que da Corte
Suprema. Salta aos olhos que, em grau e assertividade, e em quantidade de
comentários, Sua Excelência se destaca e destoa por completo do comportamento
público de qualquer de seus pares. Magistrados outros, juízes e membros do
Ministério Público, de instâncias inferiores, já responderam a suas
corregedorias por declarações não raro bem menos assertivas do que as expostas
com habitualidade por Sua Excelência. Não existem corregedores para os Membros
do Supremo. Há apenas a própria Corte. Mas a Corte é a Justiça, e não se
coaduna com qualquer silogismo razoável propor que precisamente o Supremo e
seus componentes estivessem eventualmente acima das normas que regem todos os
demais juízes.
Nos últimos tempos Sua Excelência, o
Ministro Gilmar Mendes, parece ter voltado a uma de suas predileções – pode-se
assim afirmar, tantas foram às vezes que assim agiu -, qual seja, atacar de
forma desabrida e sem base instituições e a membros do Poder Judiciário e do
Ministério Público, do Procurador-Geral da República a Juízes e Procuradores de
todas as instâncias.
Notas públicas diversas já foram
divulgadas para desagravar as constantes vítimas do tiroteio verbal – que
comumente não parece ser desprovido de intenções políticas – do Ministro Gilmar
Mendes. Concentremo-nos, então, na última leva de declarações rudes e injustas
– atentatórias, portanto, ao dever de urbanidade – de Sua Excelência, que
acompanham sua atuação como relator de Habeas Corpus de presos na Operação
Ponto Final, executada no Rio de Janeiro.
Relator do Caso no Supremo, o Ministro
Gilmar Mendes não só se dirigiu de forma desrespeitosa ao Juiz Federal que atua
no caso, afirmando que, “em geral, é o cachorro que abana o rabo”, como lançou
injustas ofensas aos Procuradores da República que oficiam na Lava Jato do Rio
de Janeiro, a eles se referindo como “trêfegos e barulhentos”. Na mesma toada,
insinuou que a a posição sumulada – e perfeitamente lógica – de não
conhecimento de recursos em habeas corpus quando ainda não julgado o mérito
pelas instâncias inferiores estaria sendo usada como proteção para covardia de
tomar decisões. Com esta última declaração Sua Excelência conseguiu a proeza de
lançar, de uma só vez, sombra de dúvida sobre a dignidade de todas as
instâncias inferiores e mesmo a seus colegas de Tribunal, vale dizer, lançou-se
em encontro à credibilidade de todo o Poder Judiciário.
Estas declarações trazem desde logo um
grave desgaste ao STF e à Justiça brasileira. Nestas críticas parece ter
esquecido o Ministro o dever de imparcialidade constante nos artigos 252 e 254
do Código de Processo Penal bem como na Convenção Americana de Direitos Humanos
(art. 8º), no Pacto de Direitos Civis e Políticas e na Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
Ademais, as declarações são
absolutamente injustas.
Senhores Ministros, em nome dos
Procuradores da República de todo o Brasil reforçamos aqui o apoio aos membros
da Força-Tarefa da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro, que realizam um
trabalho grandioso no combate à corrupção naquele Estado, que notoriamente já
foi muito vilipendiado por violentos ataques aos cofres públicos. O trabalho da
Força-Tarefa, que atua com elevada técnica, competência e esmero, já revelou o
grande esquema da atuação de organização criminosa no Estado do Rio de Janeiro
e continua obtendo resultados expressivos, com recuperação, aos cofres
públicos, de centenas de milhões de reais desviados; bloqueio de outras
centenas milhões em contas e bens apreendidos; bem como condenações e prisões
de agentes públicos e particulares responsáveis pelo enorme prejuízo que
esquema de corrupção, peculato e lavagem de dinheiro que a criminalidade
organizada estatal causou às instituições e à população do Estado do Rio de Janeiro.
É sempre importante lembrar que, muito
do que foi comprovado pela Força-Tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro é
consequência da relação promíscua e patrimonialista de agentes públicos e
empresários, que resultaram em enorme prejuízo aos cofres públicos e a
demonstração de que para as instituições sejam republicanas e imparciais é
fundamental que não se confundam relações pessoais com as coisas públicas.
Da mesma forma, a Justiça Federal e o
Juiz Federal que cuida do caso no Rio de Janeiro têm sido exemplares em
técnica, isenção, imparcialidade e coragem, em trabalho observado e aplaudido
por todo o Brasil.
Adjetivos descabidos lançados às
instituições é comportamento comum em excessos cometidos por agentes políticos
que confundem o público e o privado. Não são esperados, contudo, de um Juiz.
Um fato a mais, todavia, separa as
declarações e atos do Ministro Gilmar Mendes neste caso de outros em que se
lançou a avaliações públicas não cabíveis. Um conjunto sólido e público de
circunstâncias indica insofismavelmente a suspeição do Ministro para o caso,
vale dizer, sua atuação (insistente) na matéria retira credibilidade e põe em
dúvida a imparcialidade e a aparência de imparcialidade da Justiça.
Gilmar Mendes foi padrinho de casamento
(recente) da filha de um dos beneficiados, com a liberdade por ele concedida.
Confrontado com este fato por si só sobejamente indicativo de proximidade e
suspeição, por meio de sua assessoria o Ministro Gilmar Mendes disse que “o
casamento não durou nem seis meses”, como se o vínculo de amizade com a
família, cuja prova cabal é o convite para apadrinhar o casamento, se
dissolvesse com o fim dele. A amizade – que determina a suspeição – foi a causa
do convite, e não o contrário.
Em decorrência deste e de outros fatos –
advogado em comum com o investigado, sociedade e notórias relações comerciais
do investigado com um cunhado do Ministro, tudo isto coerente e indicativo de
proximidade e amizade – o Procurador-Geral da República, após representação no
mesmo sentido dos Procuradores da República que atuam no caso, apresentou nesta
semana pedidos de impedimento e de suspeição do Ministro Gilmar Mendes ao STF.
Conforme a arguição, há múltiplas causas que configuram impedimento, suspeição
e incompatibilidade do ministro para atuar no processo, considerando que há
entre eles vínculos pessoais que impedem o magistrado de exercer com a mínima
isenção de suas funções no processo
Já disse a Corte Europeia de Direitos
Humanos que “não basta que o juiz atue imparcialmente, mas é preciso que exista
a aparência de imparcialidade; nessa matéria inclusive as aparências têm
importância.” Viola a aparência de imparcialidade da Suprema Corte brasileira a
postura do ministro que, de um lado, e no mesmo processo, lança ofensas e
sombras sobre agentes públicos, inclusive seus colegas, ataca decisões
judiciais de que discorda, e finda por julgar pai de apadrinhado e sócio de
cunhado.
Espera-se o devido equilíbrio – e
aparência de equilíbrio e de imparcialidade, que são também essenciais – no
comportamento de um Juiz, com a responsabilidade de julgar de forma
equidistante dos fatos e das pessoas diretamente beneficiadas no caso. Da mesma
forma é sempre o caminho correto o devido respeito entre as instituições do
Ministério Público e do Poder Judiciário, e entre instâncias do próprio Poder
Judiciário.
Senhores Ministros, apenas o Supremo
pode corrigir o Supremo, e apenas a Corte pode – e deve, permita-nos dizer –
conter ação e comportamento de Ministro seu que põe em risco a imparcialidade.
Um caso que seja em que a Justiça não restaure sua inteira imparcialidade, põe
em risco a credibilidade de todo Poder Judiciário.
Não é a primeira vez que é arguida a
suspeição do Ministro Gilmar Mendes, e mais uma vez Sua Excelência – ao menos
por enquanto – recusa-se a reconhecer ele mesmo a situação que é evidente a
todos.
O exemplo e o silêncio dos demais
Ministros e da Corte não são mais suficientes. Com a devida vênia, a
responsabilidade para com o Poder Judiciário impõe enfrentar o problema.
A ação do Supremo no caso é essencial
para que a imagem e a credibilidade de todo o sistema judiciário brasileiro não
saiam indelevelmente abalados. A eventual inação, infelizmente, funcionará como
omissão.
A ANPR representa mais de 1.300
Procuradoras e Procuradores da Republica, e confia, como sempre, no Supremo
Tribunal Federal.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DA
REPÚBLICA – ANPR
Nenhum comentário:
Postar um comentário