Há um fosso entre o que o
presidente declara e o que reivindicamos na ação concreta do governo, diz o
governador Flávio Dino, em entrevista ao UOL
Beatriz Montesanti
Do UOL, em São Paulo
O governador do Maranhão, Flávio Dino
(PCdoB), diz não acreditar que as recentes falas de Jair Bolsonaro (PSL)
contrárias ao Nordeste tenham efeitos práticos para as relações institucionais.
Porém ele, que foi alvo de críticas recentes do presidente, se preocupa com as
consequências para a sociedade brasileira do que chama de uma "violência
simbólica".
Nas últimas semanas, a região Nordeste, e
em particular Dino, entraram na mira em diversas falas de Bolsonaro durante
eventos públicos, que ora atacou os governadores da região, ora se solidarizou
com seu povo de forma polêmica.
Em uma das mais recentes declarações sobre
o tema, o presidente chegou a condicionar o repasse de verbas para os estados
nordestinos ao reconhecimento de seus representantes ao governo bolsonarista – todos
eles de partidos à esquerda no espectro político.
Para Dino, a afirmação é ilegal e
contraria a Constituição Brasileira. "Nenhum governante deve abrir mão de suas
opiniões políticas para ter acesso àquilo que não é favor, é direito",
diz.
O governador comunista tampouco se sente
ameaçado: segundo ele, as falas de Bolsonaro não reverberam na prática da
dinâmica entre os governos. Cita como exemplo o fato de seu estado ter cedido recentemente,
ao governo federal, agentes penitenciários para atuarem no Pará, após uma
rebelião em Altamira deixar dezenas de mortos. Também reforça que membros de
sua administração têm sido
recebidos normalmente em Brasília.
"Hoje ainda é visível um fosso entre
aquilo que o presidente da República anuncia [...] daquilo que nós reivindicamos
na ação concreta do governo. Se me perguntarem hoje se houve alguma retaliação
contra o governo do estado do Maranhão, eu diria que não, não houve nenhuma.
Espero que continue assim", diz.
O governador se preocupa, no entanto, que a fala do presidente provoque a "dissolução dos laços sociais" no Brasil: "Imagine o efeito multiplicador que isso gera nos poros da sociedade, como se isso fosse um exemplo para que as pessoas sejam, nas suas relações sociais, preconceituosas, discriminatórias. Isso é muito grave".
Dino falou ao UOL após participar de um
evento promovido pela Fundação Lemann, no qual debateu a situação política
atual com o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia (DEM-RJ), com o líder da
oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), e com o empresário Salim Mattar,
secretário de Desestatização e Desinvestimento do Ministério da Economia do
governo Bolsonaro.
Leia a entrevista completa.
UOL - O presidente condicionou no começo
da semana o repasse de verbas aos estados nordestinos ao reconhecimento dos
governadores. O que isso significa em termos legais?
Flávio Dino
- Nós temos que distinguir o que é parceria institucional, que nós defendemos,
daquilo que seria espécie de adesão, submissão, rendição pessoal. São duas
coisas totalmente diferentes.
No primeiro caso, a Constituição protege e
determina que tais parcerias sejam feitas, à luz por exemplo dos princípios
inscritos no artigo 37, marcadamente o da eficiência, assim como também, claro,
o da impessoalidade. O segundo caso é inexigível, nenhum governante pode ser
obrigado, em primeiro lugar, a transgredir a norma jurídica. Em segundo lugar,
a abrir mão das suas opiniões políticas, para com isso ter acesso àquilo que não
é favor, é direito.
É essa distinção que nós esperamos que
seja compreendida e essa ação seja feita. Temos hoje de um lado o pluralismo
político, com parcerias institucionais, e de outro, uma visão autoritária. Para
o primeiro caso, estou 100% de acordo e disponível ao entendimento para ações
conjuntas. Para o segundo caso, é impossível aceitar porque seria politicamente
inaceitável e inconstitucional, ilegal.
Ainda assim, há uma preocupação de que
isso de fato aconteça?
Eu acho que na prática hoje ainda é
visível um fosso entre aquilo que o presidente da República anuncia, declara,
de sua retórica belicista, cotidiana, daquilo que nós reivindicamos na ação
concreta do governo.
Ou seja, hoje, se me perguntarem até o
presente momento se houve alguma retaliação, vingança, contra o governo do
estado do Maranhão, eu diria que não, não houve nenhuma. Digo isso
reiteradamente. Espero que continue assim.
E espero também que o presidente da
República abandone essa visão unilateralista, espécie de terrorismo cultural
ideológico que ele tem praticado. Não só contra governadores, ou contra a
oposição política, mas contra largos segmentos sociais.
Acho que isso atrapalha o Brasil. O ideal
é que as duas coisas andem juntas. Uma atitude, comportamento presidencial,
mais compatível com o peso importante de seu cargo, que exige diálogo, exige
entendimento, respeito, e de outro lado, esperamos que a ação concreta continue
assim. Ou seja, haja isonomia no tratamento entre os estados e que todos sejam
tratados segundo a Constituição e as leis.
O presidente fez uma série de falas que
atacam o Nordeste, mas houve um foco na sua figura. Por que o senhor acha que
isso aconteceu?
Porque ele é uma pessoa, infelizmente,
pouco acostumada, pouco afeita, à ideia de pensamentos diferentes. É uma pessoa
que de fato acredita que pode impor suas visões. Visões muito peculiares, muito
próprias. Dele e de seu núcleo familiar mais próximo.
O diálogo que o senhor defende existe hoje
entre o estado e o governo federal?
Com o governo federal, sim. Existe
cotidianamente. A minha equipe, e eu próprio, continuamos e continuaremos a
procurar as autoridades do governo federal quando necessário. E também vamos continuar
a atender e colaborar naquilo que nos couber.
Acredito pelo fato de eu exercer plenamente
minha cidadania, ou seja, manifestar as críticas quando necessário, ele
interpretou isso como espécie de atitude da minha parte de desafio a ele. Eu
realmente não sei interpretar, não sei a que atribuir, porque nunca houve nada
nesses sete meses que explicasse tanta violência simbólica, tanta virulência,
tanta agressividade, tanto menoscabo, tanto deboche, tanto cinismo. É algo
realmente inusitado, que eu não esperava e que é totalmente desnecessário.
Por exemplo, na semana passada, o Ministério
da Justiça pediu a cessão de agentes penitenciários do estado do Maranhão para
ajudar em outro estado [o Pará]. E eu autorizei. A Força Nacional de Segurança Pública
não é do governo federal, ela é dos estados. E nós cedemos policiais nossos,
que são pagos por mim, pagos pelo povo do Maranhão, pelo governo do Maranhão,
para compor a Força Nacional.
Nós continuamos a manter uma atitude
crítica, claro, mas respeitosa e colaborativa. E esperamos que haja reciprocidade.
E isso até aqui, como eu disse, não me queixo. Até aqui nossos secretários,
nossa equipe, o vice-governador [Carlos Brandão Junior, do PRB] foi recebido
essa semana em Brasília por vários órgãos do governo federal, recebido no
próprio Ministério da Economia, por exemplo. Então, até aqui, não há nenhuma
indicação de que essas ameaças do presidente da República vão se concretizar. O
que eu desejo é que elas não se concretizem e que ele abandone as ameaças.
Então essas falas não tiveram nenhum
impacto prático por enquanto?
A não ser o impacto de gerar na sociedade
brasileira um clima de dissolução dos laços sociais, culturais e federativos
que são imprescindíveis para que nós convivamos juntos na mesma nação.
O presidente da República tem o poder
real, que ele diz que é o poder da caneta, mas tem também um poder simbólico.
Ele é o chefe de Estado, é a autoridade máxima do país. É a principal
referência política, social. Ele não pode dizer palavras ao vento. Ele não pode
proferir impropérios, usar palavras de baixo calão, ser agressivo, achando que
isso é algo inocente, que é uma brincadeirinha. Não é.
Todas as vezes que ele, por exemplo, de
modo preconceituoso, fala contra mim, que sou governador, ou contra
governadores, ou que faz brincadeirinha com o próprio ministro [da
Infraestrutura] dele, Tarcísio [Freitas], diz que era "cabeça-chata",
"cabeção" etc., todos nós temos como nos defender, temos o poder da palavra.
Mas imagine o efeito multiplicador que isso gera nos poros da sociedade, como
se isso fosse um exemplo para que as pessoas sejam, nas suas relações sociais,
até familiares, profissionais, preconceituosas, discriminatórias? Isso é muito
grave.
Imagine quantas pessoas foram
discriminadas em razão daquela "brincadeirinha", entre muitas aspas,
do "paraíba". Quantos nordestinos e filhos de nordestinos sofreram
violência simbólica nesses dias? Após essa aparentemente inocente
brincadeirinha. Então é coisa muito séria. Eu espero que ele [Bolsonaro] também modere não só a atitude, mas que modere a
linguagem. Isso é muito importante para o Brasil.
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