A ousadia do roubo das máquinas usadas para recuperar Mariana só se explica se houver a certeza absoluta da impunidade
*Ana Maria Machado
O Globo
Há alguns dias, uma imensa pedra se desprendeu e
rolou morro abaixo sobre uma comunidade em Vitória. Por sorte, não acertou
ninguém, e não se perderam vidas, mas destruiu tudo o que estava em seu
caminho. Além disso, abalou o equilíbrio que mantinha no lugar um conjunto de
blocos de granito. Outras pedras de várias toneladas podem rolar a qualquer
momento. A Defesa Civil — que já havia alertado os moradores sobre os riscos do
lugar onde estavam se estabelecendo — evacuou a área e tomou providencias para
que as famílias deslocadas se abrigassem em espaços provisórios enquanto durem
as obras de contenção.
A partir daí, repete-se o quadro que vemos por todo
o país diante de catástrofes semelhantes — sejam elas deslizamentos, enchentes
ou de qualquer outra natureza. Alguns moradores têm de ser retirados quase à
força e, na primeira oportunidade, voltam aos locais de onde foram obrigados a
sair. Mesmo correndo grandes riscos, muitas vezes não conseguem seu objetivo:
defender o que é seu, tudo o que têm na vida. Não podem contar com um
policiamento eficiente para proteger os parcos bens, adquiridos com tanta
dificuldade. Os ladrões são mais rápidos. Em poucas horas, saqueadores já
arrombaram e depenaram as casas, levando roupas, móveis, eletrodomésticos. O
tão celebrado homem cordial brasileiro mais uma vez revela sua compaixão zero.
E nisso não é diferente dos saqueadores que fizeram algo parecido em Nova
Orleans após a passagem do furacão Katrina. Analistas falam em refreamento da
solidariedade e da empatia. Ou acirramento da competição e da hostilidade. Em
terras tupiniquins, somada à mais absoluta certeza de impunidade. Até mesmo com
as desculpas cínicas desse personagem bem nosso, o ladrão coitadinho, que
também é carente de tudo e precisa pensar no amanhã de sua família, ou acha que
nesse caso não haveria lei proibindo, já que eram bens abandonados, largados,
deixados para trás, sem dono.
Em outra escala, algo disso se repete nos desvios de
merenda escolar ou de doações para vítimas de enchentes, e no que agora ocorreu
após o rompimento da barragem em Mariana. Chega a ser inacreditável. Antes de
mais nada, roubar máquinas que trabalhavam para começar a minorar os efeitos de
uma tragédia dessa dimensão é falta de compaixão e de responsabilidade cívica
em grau extremo, indigna da espécie humana. Qualquer bando de cachorros vadios
tem mais sentido de coletividade.
Então uma quadrilha consegue roubar do canteiro de
obras as retroescavadeiras e demais máquinas que lá estavam, sendo utilizadas
para começar a recuperar o terreno destruído e recoberto da lama de dejetos?
Tantas assim? Tão grandes? Tão lentas? Sem deixar pistas? Ninguém se deu conta?
Foram abduzidas pelo ET de Varginha, que anda atacando novamente? Não dá para
imaginá-las sendo removidas de balão ou helicóptero, sem serem detectadas pela
Polícia Rodoviária. Ou, como nas histórias em quadrinhos, de super-heróis e
supervilões, sendo borrifadas de tinta invisível ou sofrendo os efeitos de um
raio desintegrador que só iria reintegrá-las muito longe, talvez no Planeta
Mongo. A não ser que estejam em algum esconderijo subterrâneo, junto com as
vigas de concreto roubadas da Avenida Perimetral, nas barbas de todo mundo, e
jamais localizadas.
Como ninguém percebeu algo dessa dimensão? Dá para
acreditar nessa história mal contada? A ousadia de uma ação dessas só se
explica se houver a certeza absoluta da impunidade. Da mesma forma que esses
desvios de milhões do dinheiro publico, de que o país não para de tomar
conhecimento. Tudo amparado na convicção de que a lei não é para valer, sempre
pode ser burlada — experiência que se repete na vida do cidadão. Ou se repetia,
o que só confirma a importância da Lava-Jato e do julgamento do mensalão.
Mas as leis físicas se impõem — nas barragens que se
rompem, nas encostas que deslizam com as chuvas, nos rios assoreados que
inundam cidades impermeabilizadas onde suas águas não encontram a porosidade da
terra. Ou na poluição do ar pelos combustíveis fósseis ou pelo pó de minério ao
longo das ferrovias de mineradoras. Ou no esgoto que emporcalha as praias
brasileiras, de Santa Catarina ao Maranhão, passando pela triste Baía de
Guanabara. Também as leis da economia, em sua inexorável matemática, estão
mostrando no que dá gastar mais do que se ganha ou fingir que se cresce sem
produzir mais.
Só que essas leis físicas ou matemáticas não cedem a
argumentos, slogans ou chicanas, nem estão sujeitas a serem compradas por quem
dá mais — como os depoimentos e investigações da Lava-Jato estão revelando que
acontece com emendas enxertadas em medidas provisórias, às escondidas, mediante
propina a políticos, uma das mais repugnantes práticas de corrupção jamais
inventadas. A confirmar, para nossa desgraça, que estamos sob o domínio da Lei
da Selva. Resta à população aguentar a consequência e lembrar disso na hora do
voto. Se não estiver anestesiada.
*Ana Maria Machado é escritora
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