O atual Congresso, envolvido até o pescoço nos escândalos da Petrobras, não tem legitimidade para julgar sequer síndico de prédio e é parte interessada em sua própria sobrevivência.
Por Vladimir Safatle
Folha de S. Paulo
O presidente da Câmara, homem ilibado
que o procurador-geral da República definiu singelamente como
"delinquente", apressa-se em criar uma comissão de impeachment com
mais da metade de deputados indiciados a fim de afastar uma presidenta acusada
de "pedaladas fiscais" em um país no qual o orçamento é uma mera
carta de intenções assumida por todos.
Se valesse realmente este princípio, não
sobrava de pé um representante dos poderes executivos. O que se espera, na
verdade, é que o impeachment permita jogar na sombra o fato de termos
descoberto que a democracia brasileira é uma peça de ficção patrocinada por
dinheiro de empreiteiras. Pode-se dizer que um impeachment não é um golpe, mas
uma saída constitucional. No entanto, os argumentos elencados no pedido são
risíveis, seus executores são réus em processos de corrupção e a lógica de
expulsar um dos membros do consórcio governista para preservar os demais é de
uma evidência pueril. Uma regra básica da justiça é: quem quer julgar precisa
não ter participado dos mesmos atos que julga.
O atual Congresso, envolvido até o
pescoço nos escândalos da Petrobras, não tem legitimidade para julgar sequer
síndico de prédio e é parte interessada em sua própria sobrevivência. Por estas
e outras, esse impeachment elevado à condição de farsa e ópera bufa será a pá
de cal na combalida semi-democracia brasileira.
Alguns tentam vender a ideia de que um
governo pós-impeachment seria momento de grande catarse de reunificação
nacional e retomada das rédeas da economia.
Nada mais falso e os operadores do
próximo Estado Oligárquico de Direito sabem disto muito bem. Sustentado em uma
polícia militar que agora intervém até em reunião de sindicato para intimidar
descontentes, por uma lei antiterrorismo nova em folha e por um poder
judiciário capaz de destruir toda possibilidade dos cidadãos se defenderem do
Estado quando acusados, operando escutas de advogados, vazamento seletivo e
linchamento midiático, é certo que os novos operadores do poder se preparam
para anos de recrudescimento de uma nova fase de antagonismos no Brasil em
ritmo de bomba de gás lacrimogêneo e bala.
Uma fase na qual não teremos mais o
sistema de acordos produzidos pela Nova República, mas teremos, em troca, uma
sociedade cindida em dois.
O Brasil nunca foi um país. Ele sempre
foi uma fenda. Sequer uma narrativa comum a respeito da ditadura militar fomos
capazes de produzir. De certa forma, a Nova República forneceu uma aparência de
conciliação que durou 20 anos. Hoje vemos qual foi seu preço: a criação de uma
democracia fundada na corrupção generalizada, na explosão periódica de
"mares de lama" (desde a CPI dos anões do orçamento) e na paralisia
de transformações estruturais.
Tudo o que conseguimos produzir até
agora foi uma democracia corrompida. A seguir este rumo, o que produziremos
daqui para a frente será, além disso, um país em estado permanente de guerra
civil.
Os defensores do impeachment, quando
confrontados à inanidade de seus argumentos, dizem que "alguma coisa
precisa ser feita". Afinal, o lugar vazio do poder é evidente e
insuportável, logo, melhor tirar este governo. De fato, a sequência impressionante
de casos de corrupção nos governos do PT, aliado à perda de sua base orgânica,
eram um convite ao fim.
Assim foi feito. Esses casos não foram
inventados pela imprensa, mas foram naturalizados pelo governo como modo normal
de funcionamento. Ele paga agora o preço de suas escolhas.
Neste contexto, outras saídas, no
entanto, são possíveis. Por exemplo, a melhor maneira de Dilma paralisar seu
impeachment é convocando um plebiscito para saber se a população quer que ela e
este Congresso Nacional (pois ele é parte orgânica de todo o problema)
continuem. Fazer um plebiscito apenas sobre a presidência seria jogar o país
nas mãos de um Congresso gangsterizado.
Em situações de crise, o poder
instituinte deve ser convocado como única condição possível para reabrir as possibilidades
políticas. Seria a melhor maneira de começar uma instauração democrática no
país. Mas, a olhar as pesquisas de intenção de voto para presidente, tudo o que
a oposição golpista teme atualmente é uma eleição, já que seus candidatos estão
simplesmente em queda livre. Daí a reinvenção do impeachment.
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